Memórias do segundo sexo


“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, económico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.”
Simone de Beauvoir. O segundo sexo. 1949.



The big sleep/À beira  do abismo.  Howard Hawks. 1946.

Enquanto criança sentia um enorme prazer em ser rapaz. Na lotaria da concepção havia-me saído a condição de macho e isso era para mim profundamente reconfortante. O mundo estava feito, pensava eu, para os homens. Desdenhava das brincadeiras das meninas, dos floreados, das casinhas, e achava que a violência gratuita das brincadeiras com os meus colegas rapazes – apesar de eu não estar intimamente talhado para a coisa – é que era a vida. Talvez não errasse em achar isso. O mundo era efetivamente mais de tiros, mais de cotoveladas nos colegas, mais de palavrões, do que a placidez organizada do mundo feminino que me era possível vislumbrar.

No entanto rapidamente me apercebi que aquele mundo masculino, omnipotente, que a televisão e a algazarra alarve dos homens me transmitia era, efetivamente, aparente. Criado no meio de mulheres foi quase intuitivo perceber que o domínio masculino contra o qual Beauvoir e tantas outras se haviam alevantado, era já apenas um conceito arqueológico, e não uma realidade, ao qual as mulheres davam um silencioso – ou mesmo talvez desdenhoso - assentimento. Os senhores de gravata e chapéu continuavam a ocupar os lugares da frente, mas o poder de decisão residia cada vez mais nas mulheres, e isso iria naturalmente ter as suas consequências.


Mamma Roma.  Pasolini. 1962.


A educação é, sem dúvida, o principal barómetro do desenvolvimento, quer consideremos a sociedade ou o indivíduo. Por isso não constitui para mim qualquer surpresa que em Portugal, comparados por exemplo os últimos quatro anos, e para uma população jovem que tem ligeiramente mais rapazes do que raparigas (51% para 49%), as matrículas no ensino superior para esse período tenham sido claramente mais femininas do que masculinas (56% para 44%). Ou seja, as raparigas vão claramente na frente, o que para mim, que lido com os jovens nestas idades, não constitui qualquer surpresa. E só não me alongo em mais comentários não vão os meninos, coitados, ficarem deprimidos ao perceberem que a realidade não é um facto mas uma construção. Eu sei que me vão dizer que os homens continuam a ocupar os lugares-chave. Claro que sim, por comodidade das mulheres que não gostam de se expor demasiado. Só em casos graves como o da Finlândia, um dos primeiros países a ser devastado pela crise em 2008, com dívidas superiores a 1000% do seu PIB e uma moeda que desvalorizou 85% face ao euro! Aí, perante tal gravidade, entraram as mulheres e mandaram os homens novamente para a pesca, com os espantosos resultados económicos e sociais que hoje se conhecem. Chegaram ao cúmulo, vejam lá, de eleger uma primeira-ministra homossexual, não fosse ela ter qualquer nefasta influência masculina, à cautela. Recuperaram o país e foram-se novamente embora. Mas estão de olho.



A escolha de Sofia.  Alan J.Pakula. 1982.


Impõem-se então medidas. E urgentes! O aquecimento global não é um problema quando comparado com este. Por mim sugiro já algumas simples medidas profiláticas.
Continuar a ressonar e bem alto se possível. Não nos podemos deixar enredar naquela argumentação de que incomoda. Nada de pensos e muito menos operações. Ressonar alto e incomodar é um statement masculino, ineludível. Cremes, nem pensar neles! É assim que vamos perdendo a nossa credibilidade. Desodorizante e água de colónia, e com parcimónia. Banir os programas dos comentadores de futebol. Nada afeta mais a nossa credibilidade do que essas peixeiradas televisivas. Elas não percebem nada de futebol, é-lhes inacessível essa bênção, mas os programas desportivos, em bom rigor,  arrasam a magia que o futebol (ainda) tem e dão-lhes a percepção da nossa infinita infantilidade. E há que pensar noutros. E já.

E quando recuperarmos finalmente, após denodado esforço, o nosso domínio, vamos, eu sei, perdê-lo novamente. Assim - Há nos teus ombros turbulentos/cintilações, pressentimentos.../Os nossos corpos descerão/ para que  abismos lamacentos? - na rendição absoluta de um poema de David Mourão-Ferreira.

Mas nunca desarmar, nunca, por mais desarmantes que elas sejam. E são-no.


Publicado in O Comércio de Guimarães. 04.03.2015.

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