Coitadeza
“Nos bairros de Bissau, jovens exibem um misto de desesperança e
resignação, que se consubstancia na palavra crioula «coitadeza».”
Ana Cristina Pereira. In Público. 16 de novembro 2015.
Encontrei no Público, há
uma semana, uma excecional palavra nova
– coitadeza – cozinhada na prolífica flexibilidade da nossa língua pelos jovens
sem esperança da Guiné-Bissau. Se em vez de irredutíveis na preservação
ecológica dos “c” e dos “p” antes das consoantes nos preocupássemos em abrir os
olhos e os ouvidos à língua que se reinventa, talvez tudo fosse um bocadinho
melhor. Ou pelo menos melhor explicitado verbalmente, e a distância entre o que
pensámos e o que dizemos se encurtasse.
A tristeza é séria e pesada.
Acontece-nos de repente e cava um buraco enorme na alma. É incontornável.
A coitadeza, pelo contrário,
é uma espécie de tristeza evitável. Escusada e estúpida. Incompreensível pois
não tem de ser e é-o apenas por desleixo de alguém que, escusadamente, nos
deixa nesse estado de coitadeza.
Os atentados de Paris
deram-nos uma imensa tristeza. Aconteceu, inesperada, a morte de muitas pessoas
cujo único erro foi estarem ali com o coração desarmado para verem um concerto,
comemorarem o aniversário de uma amiga, conversarem na esplanada de um café.
A situação política nacional
enche-me, de outro modo, de profunda coitadeza. Estamo-nos a ver a caminhar
para lado nenhum, mas continua-se como alguém que, equilibrando-se mal numa
bicicleta, pedala apenas com o propósito de não cair. Pelo menos no imediato.
Quando se perde alguém que
se ama fica-se inapelavelmente triste. Não há nada a fazer e isso faz cair em
nós toda a esperança, toda a alegria, como um reposteiro de veludo cai pesado e
ponderável. Inevitável no chão.
Seria por isso forçado
classificar igualmente de tristeza aquilo que sente o nosso amigo
hipocondríaco. Já o vimos, em teoria, perto da morte várias vezes. Qualquer
mancha, qualquer dor, são, para ele, mais que uma mancha ou uma dor, mas um
prenúncio de qualquer coisa muito grave. Não manchemos a tristeza para
substantivar o nosso amigo. O seu estado é de coitadeza, uma persistente e
irritante coitadeza, mas uma coitadeza certamente.
A coitadeza será assim um
pequeno degrau na complicada escadaria da tristeza. A coitadeza reverte-se com
bom-senso, o nosso e o dos outros, a tristeza não se reverte. Aquieta-se,
quando muito.
No entanto a tristeza, de que
o meu colega de crónicas falava há uma semana atrás, pode e deve (mesmo assim)
fazer-nos mover. Mesmo assim. Contrariando a sua pesada quietude ... saindo do
sítio em que ela nos esmaga pelo peso.
Toda esta tristeza que se
abate sobre a Europa obriga-nos a sermos melhores, mais solidários e sobretudo
mais atentos, mais inteligentes, mais decididos.
Sinto-me necessariamente
mais europeu a cada bomba que rebenta numa cidade europeia, por cada imbecil
que grita o nome de Alá para matar. Não me preocupo sequer hoje em entabular
conversa com quem acha que a culpa é sempre nossa e alimenta o exotismo idiota
de uma sociedade nova, e nos enche com o seu ódio escusado sobre esta
civilização, sobre a nossa civilização, só porque sim. Enjoei há muito e fico
surdo. Chegar aqui deu muito trabalho e muita tristeza! Eu gosto desta Europa
que nos olha, apesar de tudo, paciente. Gosto (particularmente hoje) do Centro
Pompidou, do Schauble, do Miguel Ângelo, duma bicicleta ferrugenta em
Amesterdão, do amigo grego e da médica romena, do inglês Benjamim Clementine a
cantar no Teatro Aveirense, sinto-me verdadeiramente solidário com o adepto do
Schalke 04 que perdeu 1-3 no último sábado, perdido por Picasso com o desejo demente
por um panino italiano ou por avistar o génio do Gaudí na pedra, por Budapeste
iluminada por Sara Sampaio. Gosto desta cultura que se funde e da qual me
aproprio como se fosse minha. E é.
Hoje não chove. Mas se
chovesse aquietava esta tristeza num poema (em italiano) de Gabriele D’Annunzio.
Mesmo sem perceber a palavra perceberia a música (europeia) que ela contém:
(...) piove su le nostre mani/ignude/su i nostri vestimenti/leggieri,/su i
freschi pensieri/che l’anima schiude/novella,/su la favola bella/che
ieri/t’illuse, che oggi m’illude,/o Ermione.
La pioggia nel pineto
Créditos Fotográficos (de cima para baixo):
Benjamim Clementine no Teatro Aveirense (24.11.15) Jorge Gonçalves
Gabriele D'Annunzio aqui
David de Miguel Ângelo aqui
Início do jogo Schalke - Bayern M. (21.11.15) aqui
Créditos Fotográficos (de cima para baixo):
Benjamim Clementine no Teatro Aveirense (24.11.15) Jorge Gonçalves
Gabriele D'Annunzio aqui
David de Miguel Ângelo aqui
Início do jogo Schalke - Bayern M. (21.11.15) aqui
Crónica publica in O Comércio de Guimarães (25.11.15)
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