Ode ao mestre-de-obras

 Gosto do nome mestre-de-obras. Já não se usa, desapareceu na voragem do nome empreiteiro. O mestre-de-obras é, frequentemente, um pequeno empreiteiro. Se não chegar a tal apuro fiscal designa-se pelo interessante nome de biscateiro. Menos nobre, mas ainda assim um bom nome.

A magnífica língua portuguesa tem, como o país, a estranha tendência para se sabotar a si mesma. Uma língua que tem a designação de mestre-qualquer-coisa, para nomear alguém que sabe fazer bem uma determinada atividade tem uma extraordinária e imaginativa  riqueza vocabular. No entanto, hoje, há a parolice de se designar wedding planer para o mestre-de-cerimónias de um casamento. Deprimente e um sinal alarmante de que se desconhece a própria língua que deveria ser, também, a nossa Pátria.



Os pequenos empreiteiros ganharam, como os políticos, má fama. Para os grandes empreiteiros essa é uma segunda pele, mas os pequenos vão de arrasto. Os epítetos que ouvimos atribuir aos políticos, também se atribuem aos empreiteiros. Sempre depreciativos e, tantas vezes, injustos.

Tanto assim é que durante os estranhos anos da pandemia nunca ouvimos ninguém a louvá-los, a reparar e a elogiar a sua dedicação à argamassa, ao país. Incensaram-se os médicos, os polícias, os professores, mas para os empreiteiros nem uma só palavra de ânimo e reconhecimento. E eles nunca pararam! Quando o país se encafuou nos ecrãs, eles continuaram a tratar da nossa pichelaria, da nossa carpintaria, dos fios soltos, dos tubos, sem tergiversarem. Mas nem um “força aí mestre” ou um “tudo vai ficar bem com a vossa ajuda”. Nada.

 

Admito que a minha profunda admiração pelos mestres-de-obra vem do facto de eu não ter, dentro de mim, qualquer vestígio de habilidade para reparar o que quer que seja. Os mestres-de-obra nunca dizem que não sabem, mesmo não sabendo. Suponho que haverá uma formação profissional subterrânea a que eles acedem – tipo loja - e que lhes permite parecer que têm certeza naquilo que nos dizem. Ora estas manchas que aqui vê são por causa da inexistência de rufos no telhado. E nós acedemos à colocação do rufo e a mancha, afinal, não desaparece. Como lhe tinha dito (e nós não sabemos se ele o disse, mas aceitamos) o rufo ajudou, mas o problema está na anterior colocação da tela. Aí são como os políticos: a culpa é sempre do antecessor.

 


O mestre-de-obras é um filósofo. Mais do que a força de braços, existe uma tremenda habilidade intelectual. Uma frase que nos desarma, uma obra a mais que não descortinámos, mas que existe e que era fundamental para a obra não parar. Ó doutor isto com a guerra da Ucrânia o preço do bidé passou para o dobro. E como nós, clientes, não temos uma aplicação que nos dê a evolução do preço do bidé ou do azulejo, temos que nos render à sólida certeza do empreiteiro. Para termos hipóteses de discutir com um empreiteiro, de igual para igual, teríamos que largar, durante o tempo da obra o nosso emprego e dedicarmo-nos a estudar a fundo os materiais de construção civil. Tarefa impossível. Por isso há que confiar. Há que tentar ler no seu olhar de póquer alguma insegurança para podermos duvidar. Se ele não piscar os olhos, estamos feitos.

 

A retórica destes mestres deveria ser melhor estudada. Merecia o esforço académico. E não estou a falar do “isto, a correr bem, só lá para depois do Natal” quando ainda não estamos na Páscoa, ou “a tinta não assenta sem este primário, fica mais caro, mas fica melhor”. Não, estou a falar daquelas pérolas originais que fui retendo ao longo do tempo.

Uma das últimas, perante a exasperação de um amigo meu, foi esta, dita com toda a tranquilidade: “isto está parado, mas está a andar”. É difícil encontrar, mesmo no mais apurado surrealismo, uma frase tão boa e desarmante. É que apesar do paradoxo se percebe o sentido. Pode não se ver nada a andar, mas eu estou a mexer-me para que quando começar a coisa avance. Que responder a isto. Nada, a não ser confiar no imobilismo ativo do empreiteiro.

 


A sua linguagem é gráfica: “Já estou a ver o arquiteto às riscas” resume, numa só frase, aquilo que outro profissional, menos dado à economia verbal, demoraria minutos a explicar. Uma das minhas preferidas é, no entanto, perante uma necessidade minha de última hora, um desejo irresistível de ver um pormenor melhorado, o mestre-de-obras disparar, pensativo e lento, “isto é um bocado impossível”. Fiquei absorto perante tão magnífica resposta. Ele não estava a ver bem como resolver a questão, mas não me deixou sem resposta, sem esperança. Deixou uma frincha para a possibilidade, mas, à cautela, a bola do meu lado para qualquer erro que ele eventualmente viesse a cometer. 

Quantas vezes progredimos através das pequenas frinchas que nos deixam atravessar para outras dimensões não pensadas. Enfrentar impossibilidades que, afinal, não o são.



Publicado in O Comércio de Guimarães, 1 de maio de 2024


Imagens: pinturas de Lim Cheng Ho e Louis Malaval, postal da coleção de Elisabeth Cowling

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