Vitória: a nossa eterna questão
No único campeonato de futebol no mundo em que ganha (quase sempre) uma de três equipas (que abocanharam 98% dos campeonatos realizados), ser adepto de outro clube é algo de profundamente heroico e alternativo.
Em Guimarães ainda se vive a essência em que o sucesso do futebol se fundou: a identificação das comunidades com o seu clube desportivo. Em Portugal essa essência foi sendo arrasada e subvertida pela catequização que se faz em torno dos três clubes, pela proteção da comunicação social dirigida para perpetuar e ampliar esse mesmo domínio. Importantes cidades como Setúbal, Aveiro ou Coimbra foram minadas pela febre dos três clubes, além da gente interesseira que os dirigiu, e os seus clubes arrastam-se por divisões secundárias. Os únicos clubes que ganharam campeonatos além dos três, Boavista e Belenenses, também foram obliterados pela realidade e são hoje uma pálida sombra daquilo que já foram. A fatalidade de importantes clubes caírem rapidamente na irrelevância é um facto.
O nosso caso
A tremenda paixão que existe pelo Vitória, a dedicação dos seus adeptos, não é, no entanto, correspondida pelos resultados desportivos alcançados. O quarto clube com mais presenças na primeira divisão tem um pecúlio fraco para tanta devoção e fidelidade. Aqui entrará a essência do clube: os seus sócios são-no por identificação com a comunidade e não propriamente pelo retorno de felicidade que o clube nos é capaz de dar. Mas, mesmo assim, tal facto não deixa de ser angustiante, o que se agudiza nas inúmeras épocas em que as coisas não correm bem.
O crescimento do Vitória nos últimos anos é assinalável. Cerca de 30.000 sócios é um valor extraordinário face à dimensão da cidade e do concelho. O mérito, além de boas campanhas publicitárias, é, fundamentalmente dos vitorianos, que, de geração em geração, mantêm a chama viva e passam a paixão aos filhos como um legado. O facto da sede se encher de gente que se queria inscrever como sócia no dia a seguir à descida de divisão, em 2006, é um dos episódios mais significativos e comoventes da nossa história comum. Caracteriza-nos.
Os diferentes períodos
O campeonato nacional de futebol foi, desde muito cedo, dominado pelas três equipas que ainda hoje o dominam, e a entrada adicional de clubes era feita por convite ou por disputa entre campeões regionais. O Vitória, a partir da segunda metade dos anos da década de 1930, domina claramente o campeonato distrital e, posteriormente, o Campeonato do Minho, mas tardou o acesso à principal categoria, esbarrando sempre em decisões administrativas injustas. Tal só se efetivou na época de 1941/42 em que o Vitória derrotou o U.Lamas, representante de Aveiro, no Campo da Constituição, no Porto. Esse ano é notável pois o Vitória vai também à final da Taça de Portugal com o Belenenses, jogo que perdeu por 2-0. O Vitória habitua-se e faz o possível, mas cai e fica na segunda divisão, durante as épocas de 1955/56, 1956/57 e 1957/58. Regressa com imensa festa na época de 1958/59 e fica na divisão principal até hoje, tirando a descida em 2006. Assim, até agora, os três clubes têm 91 participações, o Vitória 80, o Belenenses 77, o V.Setúbal 72, o Braga 69, a Académica 64, o Boavista 62, estando todos os outros a considerável distância.
Proponho-me analisar, de forma breve e muito resumida, três períodos da nossa história mais ou menos equivalentes ao nível de tempo: o período de afirmação do clube no escalão principal (1958/59 a 1979/80), o período de Pimenta Machado (1980/81 a 2003/04) e o período que se lhe seguiu (2004/05 até 2024/25).
O retorno à primeira divisão em 1958 representa um marco importante na história do clube e na afirmação da comunidade. O primeiro período em análise, até Pimenta Machado se tornar presidente, em 1980, traduz uma comunidade trabalhadora e orgulhosa que não regateia esforços para se afirmar. O Vitória é também um espelho dessa comunidade que, em pleno Estado Novo, cria movimentos como a Unidade Vimaranense para realizar aquilo que o Estado nega a Guimarães. O Vitória tem 10 presidentes nessas 22 épocas que, regra geral, são nomeados pelos seus pares, pelos notáveis que se interessam pelo clube. Ser presidente do Vitória era, muito mais que uma honra, uma obrigação de devolver à comunidade aquilo que ela lhes dava em notoriedade. Ser presidente do Vitória representava muitas vezes um prejuízo para as finanças do próprio presidente que, frequentemente, acudia do bolso próprio às dificuldades do clube que temporariamente dirigia. Eram outros tempos claro, em que o negócio do futebol era incipiente. Mesmo assim o Vitória tem uma prestação muito digna para quem se estava a afirmar de forma plena. A classificação média nesse período é o 6º lugar, em campeonatos que tiveram 14 ou 16 equipas, alcançando um meritório 3º lugar em 1969. Para se poderem, creio, fazer comparações mais credíveis, com campeonatos com mais equipas, decidi fazer um exercício simples de matemática que é dividir a classificação média do Vitória pelo número médio de equipas, multiplicar por 100, e obter uma escala de 0 a 100. Esse coeficiente será tanto melhor quanto mais próximo do zero estiver. Deu-me 41 neste período, ou seja, o Vitória teve uma classificação média que o situou no fim dos dois primeiros quintos das equipas que participaram nesses campeonatos.
A entrada de Pimenta Machado, que esteve à frente dos destinos do clube praticamente um quarto da sua história, trouxe uma marca indelével que perdura até hoje. O jovem presidente deixará um legado imenso (apesar de polémico) sendo, à data, aquele que, a seguir a Pinto da Costa, mais anos esteve à frente de um clube português. Pimenta será, previsivelmente, ultrapassado por António Salvador, durante o mandato que o presidente do Braga agora cumpre.
Pimenta trouxe uma ambição e um discurso diferente. Perdeu-se, em minha opinião, quando deixou que um clube tão único se confundisse com ele próprio e com os seus interesses. Esta estabilidade diretiva não deu, contudo, extraordinários frutos. A classificação média nas 24 épocas que esteve à frente do clube foi o 7ºlugar, com um coeficiente de 40. Nada de relevante face ao passado. Há dois magníficos 3ºs lugares e uma Supertaça. Há ainda duas épocas (87/88 e 00/01) em que escapamos à descida na última jornada.
O período pós-Pimenta é complexo e tumultuoso. O Vitória teve 5 presidentes, mas sempre imerso em confrontos e cismas. Três deles demitiram-se, até ver. No entanto este período marca a mais importante conquista (a Taça de Portugal em 2013), um 3º lugar e uma dolorosa descida de divisão. A classificação média foi igualmente o 7º lugar e o meu coeficiente deu também 40.
Ou seja, três períodos distintos e completamente diferentes, dão, praticamente, os mesmos resultados. Será isto uma fatalidade?
O que nos dói
Quando nos dedicamos de alma e coração a algo, seja a um amor, seja uma carreira profissional, e não temos os esperados resultados, a frustração instala-se e corrói-nos. Nós, os vitorianos, ao longo da nossa história convivemos mais com a tristeza do que com a alegria, pois temos uma alma maior do que o corpo. Nas últimas décadas a estúpida comparação com o Braga (que face à sua estabilidade diretiva e acerto na sua política desportiva, está a léguas de nós) ainda acentua mais essa frustração. Quanto mais rapidamente assumirmos isso, melhor.
A forte alma e apego dos vitorianos é, assim, o melhor do clube, mas, muitas vezes, transforma-se num problema. Qualquer percalço ganha (sempre) a dimensão de uma catástrofe. As direções sentem-se frequentemente acossadas e ou se demitem ou dão saltos temerários em frente, normalmente precipitados e frequentemente penalizadores do equilíbrio financeiro do clube.
Vamos (finalmente) aprender?
A análise que fiz dos resultados, que se encontram nos quadros, em três períodos tão distintos da história do nosso clube, levam a acentuar a frustração. Nada se aprendeu com o período anterior. A melhor prestação, para mim, é a das décadas de 1960 e 1970, pois é um período de afirmação, em que o Vitória tinha presidentes e direções de verdadeiros vitorianos. Pimenta Machado, com a inegável capacidade que possuía, não conseguiu catapultar o clube através da aprendizagem anterior. O período que se lhe seguiu, mais aberto e democrático, também não foi capaz de afirmar o clube numa dimensão próxima à da dedicação dos seus adeptos.
O que António Miguel Cardoso (AMC) disse no final do jogo com o Arouca foi surpreendente. Votei na lista que encabeçou, assim como milhares de vitorianos, como reconhecimento pelo trabalho efetuado no seu primeiro mandato, em que tivemos resultados desportivos que nos orgulharam, num período em que as receitas televisas tinham sido irresponsavelmente obliteradas pela direção anterior (acho, igualmente, que os Estatutos deveriam obrigar a que as posições do Vitória na SAD, face à antecipação de receitas, deveriam obstaculizar e penalizar os “caprichos” irresponsáveis dos seus presidentes). Gosto do estilo (até agora) calmo e ponderado de AMC, da sua preocupação em acentuar os pontos positivos do clube, na aposta em jovens valores, na aposta profissional no alto rendimento, na determinação em conduzir o clube e não a de o deixar refém dos caprichos de um ou outro jogador. Tenho-o como uma pessoa séria e dedicada. Aquilo que AMC afirmou causou-me um incómodo tremendo. Senti-o como uma espécie de demissão antecipada pois, em bom rigor, não vejo qualquer possibilidade de fazermos uma época que nos permita alcançar o 5ºlugar. Oxalá me engane. Espero que AMC corrija o que disse e encare a sua presidência com a responsabilidade com que se propôs aos sócios no último ato eleitoral e não como algo que, a partir de um momento, já incomoda.
O mau arranque da temporada é tributário, especulo, de uma mudança de paradigma surpreendente e escusada. A responsabilidade é de quem dirige o clube e foi sufragado para isso. Tem essa legitimidade, mesmo que erre. O problema, a meu ver, é a necessidade de se explicar de forma cabal o que levou a essa mudança de paradigma. Podemos discordar, mas precisamos, sobretudo, de a entender. O não apuramento para a UEFA foi um rude golpe, mas a “revolução” que se fez esta época é manifestamente exagerada. Foi e é um risco claro e não estou nada otimista que haja, hoje, um clima propício à afirmação de novos valores, treinador incluído. É preciso pensar nisso, antecipadamente.
Eu sei que é desgastante cumprir as obrigações do clube, eu sei que é enervante ter que aguentar com insultos de imbecis que transportam para o futebol todas as suas frustrações pessoais e se julgam no direito de rebaixar os outros, quando, eles próprios, são incapazes de gerir uma equipa de matraquilhos. Caberá, igualmente, à grande maioria dos vitorianos, gente que sofre e sente o clube, que o ama, incomodar-se e verbalizar o desagrado com aqueles que criam um ambiente de tensão que em nada ajuda a equipa. É, mais uma vez, altura de o fazermos.
Que futuro?
Não creio que, na nossa comunidade, haja menos vitorianos capazes do que aqueles que existiram nas décadas de 1960 e 1970. O que mudou foi a perceção individual dos imensos riscos que assumir um clube como o Vitória encerra. O retribuir à comunidade aquilo que ela nos deu, transformou-se num frete e não numa obrigação. Enquanto há umas décadas as pessoas eram reconhecidas pelo esforço que faziam, hoje não. Estão sujeitas ao reinado da má criação, em que qualquer imbecil se arroga no direito de insultar quem tem tarefas exigentes e de responsabilidade. A discordância é saudável, o insulto é paralisante e vexatório. Assim acontece no futebol, assim acontece na política. Esta mudança de paradigma, bem como as exigências enormes que uma atividade pública e aberta acarreta, bem longe do amadorismo de outrora, afasta muitas pessoas capazes de darem o seu contributo. A mediocridade vai tomando conta das coisas perante a inação e cobarde silêncio dos restantes.
Ser presidente do Vitória é, ainda assim, creio, prestigiante. O nosso clube é um dos grandes clubes nacionais com uma história digna e que a todos nos deve orgulhar, independentemente das nossas frustrações desportivas. Esse prestígio é, creio, compensador e justo. O Vitória movimenta, igualmente, muito dinheiro e, em alturas em que nos sentimos mais descrentes, perante o alheamento geral, é igualmente um alvo fácil para arrivistas sem escrúpulos que veem no clube um negócio pessoal e não uma tarefa coletiva. Já vimos este filme algumas vezes.
A nossa principal característica é a paixão e a resiliência comunitária que impediu o clube, até hoje, de cair na irrelevância que outros caíram, mas sempre cientes que essa irrelevância está sempre à espreita e é real, mesmo para nós. O Vitória é, acima de tudo, o património da nossa comunidade. E como qualquer património identifica-nos e dá-nos a obrigação de o preservar.
Os tempos não estão fáceis, mas há sempre um amanhã e hipóteses de redenção. Não é uma má época que pode arrumar a nossa história, mas sim o que fazemos imprudentemente quando a frustração se impõe à razão. Haja por isso calma e, sobretudo, a noção que, independentemente das nossas legítimas discordâncias, é o clube, a sua história, que cabe a cada um defender. E conversemos uns com os outros, sem drama. O Vitória é importante, mas aquilo que nos preocupa é apenas o resultado de um jogo. E se acharmos que isso é drama então temos mesmo que ir ao médico. A doença, a pobreza, a guerra, a ausência de liberdade, a solidão, isso sim são dramas, tudo o resto é relativo e ultrapassável. Haja sobretudo juízo e a noção de que há muita gente feliz com o nosso dramatismo, com as nossas convulsões. Se assim o pensarmos mais rapidamente perceberemos que temos que ir à nossa essência. A nossa união, sobretudo em momentos difíceis, é aquilo que verdadeiramente chateia os nossos inimigos e da qual têm inveja.
A equipa não joga nada? Claro que não. Mas é a nossa. Não temos outra. Não queremos ter outra.
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