Balizas imaginárias
“É que o
problema das balizas invisíveis é que elas estão sempre a mudar de tamanho. E a
realidade das acções naquilo que está em
jogo é sempre deixada à imaginação do espectador.”
Blogue “Mundo hipoético dos
ses”. http://mundohipoteticodosses.blogspot.pt.
2013.
Apenas precisar daquilo que existe
é uma boa medida de equilíbrio individual. A imaginação cobre o resto. Preenche
as frinchas por onde o frio da impossibilidade poderia entrar. Calafeta a
angústia do não ter.
Lembro-me a este propósito
do futebol de rua que joguei e que outros, que agora me leem, também jogaram. Nesse
jogo de crianças a ausência física das balizas nunca impediu nenhum desafio.
Definida a base de uma baliza com uma pasta, uma pedra, um monte de areia, ou
outro objeto suficientemente visível, toda a estrutura se construía, imaginada,
para que o jogo se desenvolvesse. Media-se, com inusitado rigor, a distância
entre os postes, ou melhor entre as suas bases, e a coisa construía-se de forma
completa e eficaz a partir daí. Enquanto a barra horizontal da baliza não
merecia grandes discussões, pois a sua altura dependia da altura do
guarda-redes, e isso era facilmente verificável pela visão e pela ética, os
postes verticais eram, muitas vezes nos jogos mais disputados, razão para
intensas discussões e uma retórica infantil muito prospetiva sobre a efetiva
perpendicularidade do poste em relação ao solo que suportava a bola e os
jogadores. É golo gritavam uns, enquanto outros, contrariados, juravam que a
bola bateu no poste e por isso não entrou. E isso podia continuar. Nesses jogos
em que as balizas eram imaginadas não era só a habilidade do corpo e dos pés
que contava, era também a boa explicação da trajetória da bola que determinava
o golo. A um nível retórico mais elevado havia quem, de forma surpreendente,
não negasse que efetivamente a bola bateu no poste ... bateu no poste mas
entrou, explicava então aos adversários ocasionais o jogador mais consistente.
E desenhava no espaço, com o dedo, a real trajetória da bola, sem recurso a um replay que não existia e por isso não
era necessário. Foi assim que a bola entrou, explicava, bateu deste lado do
poste e o resto era eloquência de quem desenhava no ar e na cabeça dos
adversários a trajetória (imaginada) do remate. E das duas uma: ou o consenso
imperava ou o dono da bola resolvia a questão levando-a para casa. Pronto deixa
lá, a bola bateu no poste e entrou, acediam, pragmáticos, os que há pouco juraram
ver a bola saindo (imaginada) da zona da sua baliza.
Hoje há mais balizas. Nas escolas, nos parques, nas associações
recreativas muitas balizas foram plantadas neste país. Imagino, mesmo sem
precisar, que existirão centenas de vezes mais balizas do que há trinta ou
quarenta anos atrás. Talvez mesmo milhares de vezes, exagero. Recordo hoje a
chegada de algumas balizas aos átrios das escolas, zebradas de vermelho e
branco, que permitiram então tornar reais as trajetórias da bola por nós imaginadas.
Mesmo assim, na ausência de redes, discutia-se então se a bola entrou por
dentro ou por fora da rede agora imaginada. Depois inventamos os árbitros e aí
foi o descalabro: monopolizaram a nossa imaginação definindo pelo apito e pelos
gestos a “verdade”.
As balizas imaginárias saíram hoje das ruas e dos campos para outros
sectores. Para a política por exemplo. O que hoje assistimos entediados, em
Portugal, é à discussão se a crise bateu no poste e saiu ou se, pelo contrário,
bateu no poste e entrou, enquanto outros juram que nem no poste do Tribunal
Constitucional tocou a bola e que só é possível agora tentar perder por poucos.
Os jogos políticos são hoje entediantes, mastigados, com mais discussão
retórica do que arte na finalização e na conclusão. Os jogadores que hoje ocupam
o campo nunca jogaram na rua. Vejo mesmo assim com bons olhos outros jogadores
e outras plataformas e, mesmo da bancada, não me importaria de ajudar a construir
um futebol mais direto e objetivo que eliminasse o tédio do tiki-taka inconsequente que hoje
vivemos.
O Natal recupera, com doce cadência, as linhas imaginárias da infância. Constrói,
por outro lado, nas crianças de agora as balizas da memória. É assim tempo de
viver e recordar, de fundir a trajetória desses sentimentos numa única reta sem
princípio nem fim. Infinita por imaginação. Feliz Natal.
Publicado in O Comércio de Guimarães
Fotos obtidas em (de cima para baixo): Daily Mirror, Zimbio.com e robhubbard.wordpress.com
Foto do Facebook in panoramio.com
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