Melancolia
“Einstein
conseguiu mostrar que, por mais que nos esforcemos, nunca conseguimos acelerar
além da velocidade da luz. A velocidade da luz era o limite da velocidade final
do universo .”
Michio Kaku. O Cosmos de Einstein. 2004.
A passagem dos anos não é
particularmente divertida, mas a passagem do ano tem a particularidade de o
ser.
Há sempre a esperança, tanta
vezes tonta, de que tudo seja melhor do que o ano que passou. Bebe-se,
grita-se, comem-se as passas e trocam-se beijos com uma vontade renovada de que
tudo seja mais satisfatório. Isto porque temos, quase todos, a estranha
melancolia de nos fixarmos naquilo que correu mal e não naquilo que correu bem.
Daí a necessidade imperiosa de uma mudança, de se querer ardentemente
pulverizar o que incomoda e que nos torna circunstancialmente infelizes.
A infelicidade tem esse
arreliante sentido sólido da permanência enquanto a felicidade é, pelo
contrário, frágil e volátil. A felicidade é relativa como o tempo que a contém,
enquanto a infelicidade é (miseravelmente) absoluta.
O que nos correu mal no ano
que se extingue acaba, pela natureza sólida da coisa, por se alojar na alma de
forma ponderável. Por defeito de fabrico não damos o devido valor à felicidade,
ao prazer das coisas e das pessoas. Adão e Eva ficaram presos à culpa e não ao
prazer de terem comido a maçã. O Deus de Adão e Eva suavizou-se entretanto, mas
o defeito ficou.
E se aquilo que nos incomoda
for mais denso e permanente do que aquilo que nos dá prazer é inevitável cair
na maldição de Sísifo. Na mitologia grega Sísifo é um rei castigado pelos
deuses a fazer rolar uma pedra de mármore pela encosta acima, que cairá até à
base assim que atinge o cume. E Sísifo, um homem de expedientes que enganou a
morte e conquistou assim uma imortalidade penosa, vem novamente buscá-la e
carregá-la até ela rolar novamente pela encosta oposta. De forma dolorosamente
absurda no seu esforço patético e escusado. Eternamente.
Sísifo não leu O’Neill e
ficou ali, à volta da montanha, a carregar a pedra sem propósito aceitando o
absurdo castigo divino. Ele não leu definitivamente O’Neill: “Perguntas-me o
que deves fazer com a pedra que/ te puseram em cima da cabeça?/ Não penses no
que fazer com. Cuida no que fazer da./É provável que te sintas logo muito
melhor./Sai, então de baixo da pedra.”.
E qualquer ano, qualquer
dia, qualquer segundo é um bom momento para sair (então) debaixo da pedra, de
saber exatamente o que fazer da.
Esse é precisamente o meu
plano: sair debaixo de todas as pedras.
Por mim os telejornais abririam
com a simplicidade grandiosa do Papa Francisco quando no final da sua mensagem
de ano novo diz simplesmente “bom almoço”. Há lá algo mais importante que um
efetivo bom almoço depois de se ouvir um Papa dizer algo de tão grandioso como
“a paz é possível”? A vida pode ser isso, a possibilidade da paz e o almoço
como algo de absolutamente compatível.
Sairei assim voluntariamente
debaixo da pedra da animosidade obsessiva do Dr. Soares, da pedra do cinismo
elegante do Dr. Salgado, do tronco nu do Sr. Putin, da pedra futebolística dos comentadores
desportivos, pois terei coisas mais simples e óbvias em que pensar. As pedras
noticiosas nunca terão fim pois (julga-se) é o medo aquilo que nos prende às
notícias: a sida, a gripe das aves, a legionella,
o ébola, a irmandade islâmica, o Bin Laden, os mercados financeiros, o cigarro,
a operação Páscoa feliz e o número de mortos nas estradas.
Saúdo por isso 2015 e os
belos dias que ainda não nasceram. Saúdo o sol, as conversas que ainda não
tive, as músicas que ainda não ouvi, os beijos que darei e todos os poemas a
que perceberei (finalmente) o esplendor. Saúdo o Joe Strummer, a sua voz e a
sua guitarra aprisionadas a custo num ficheiro digital. Eternamente.
Talvez em 2015 nos deixemos
de encantar com as palavras do ano - selfie,
troika ou swap - e se descubra a
beleza triste de uma palavra absurdamente bela como melancolia.
Fotos: (1ª e 2ª) Alexandre Coelho Lima (3ª) in theclashblog.com
Publicado in O Comércio de Guimarães (07.01.15)
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