Constipação de verão
“Nunca nos
enganámos a fazer o que está certo.”
Fala do filme O Estagiário. 2015.
A melhor maneira de nos
libertarmos do preconceito sobre coisas importantes como os costumes ou as
ideias é, penso, cultivarmos alguns preconceitos menores que funcionem como
escape duma predisposição nefasta. Eu tenho alguns de estimação.
Na altura em que as pessoas
liam e compravam jornais aferia-as pelas leituras. Quem comprava o Público
merecia a minha atenção, quem passava os olhos pelo DN e JN ficava num limbo
que merecia outro teste, e fugia a sete pés de quem saltitava os olhos pelos
títulos gordos do Correio da Manhã. Nos livros ou no cinema a mesma coisa: nunca
li o Dan Brown nem os seus sucedâneos, nunca vi o Titanic.
Cheguei a perder concertos,
certamente memoráveis, só por que meti na cabeça - entre os meus trinta e
quarenta anos - que não iria a concertos de gente que fosse mais velha que eu. Permanecem
agora, perdidos, na minha agenda mental os The Cure. Só vi os U2 quando pouca
gente os conhecia e nunca fui a um concerto deles depois daquela festa
memorável em agosto de 1982.
Um vimaranense que não seja
vitoriano tem de mim uma indiferença pesada quando o assunto se assume e
rapidamente se transforma em absoluto desdém se ele torcer por um dos clubes de
massas do costume. Enfim.
Hoje estou, mesmo assim, um
pouco diferente, para melhor. Já vi os Stones e arrisquei há pouco tempo a participar
numa viagem em excursão organizada por uma companhia de viagens. Tipo aquelas
que debitam pessoas de camionetas perto de S. Francisco e que transformam o
nosso particular caos de trânsito citadino noutra coisa indefinível ainda sem
palavra própria.
Primeiro preconceito: são só
velhinhos. Mas no fundo nós não somos sempre velhinhos de alguém? Não serei eu
o velhinho dos meus alunos? Por isso eles se riem quando os trato por ó velho isto ou ó velho aquilo. E daí? Estar velho é uma consequência da nossa
magnífica resistência, o que não toca a todos. Ser velho é outra coisa: é achar
que a música de dança se esgotou nos anos 80, é seguir as desventuras das
Kardashian’s, é usar o cabelo rapado nas parietais e deixar um capachinho
capilar no cocuruto, e para isso pode ter-se 20 anos, ou menos. Os meus “velhinhos”
de viagem foram extraordinariamente jovens pois eram cultos, serenos e
perceberam que a vida é para ser vivida e não escalpelizada como um relatório e
contas.
Segundo preconceito: há
demasiada organização. É verdade ... mas talvez o adjetivo esteja a mais: há
organização, é mais correto. Eu que tenho uma família de 5 pessoas (com 4
mulheres é certo!) vejo-me aflito para meter toda a gente num carro a horas,
imaginem agora 50 pessoas numa camioneta. A guia era húngara com um estilo e
pronúncia alemã e conseguiu o extraordinário milagre de meter toda a gente na
linha. A primeira falha era repreendida por ela de forma privada, a segunda
ganhava um cariz público, a terceira – que não aconteceu – mereceria certamente
o cárcere ... mas não chegamos lá. Revivi na viagem a organização do meu
pelotão de recruta em Mafra. A guia sendo implacável era igualmente competente
na forma como preparava e explicava as coisas de que as viagens devem ser
feitas.
Tal como o país a camioneta
tinha um Marcelo. Um rapaz de quarenta e poucos que ao enganar-se no propósito
nos deu, tal como o presidente nos dá, o humor que por vezes falta ao país ...
e às camionetas.
Constipei ao pôr novamente os
pés em solo pátrio. Por isso foi um pouco tonto com a congestionamento nasal e
com o Zyrtec que tomei conhecimento de um negócio entre a Câmara Municipal e o
Vitória. Uma ideia que dá ao Vitória a possibilidade de optimizar o espaço
perto do estádio e à Câmara a possibilidade de uniformizar o Parque.
O Parque da Cidade é uma das
mais interessantes e brilhantes ideias dos últimos anos. Neste e noutros
parques os vimaranenses passeiam, descomprimem, desentopem artérias, trocam
conversas. Este parque em concreto alivia pela beleza e cuidado uma grande
concentração urbana que assim encontra o seu tempo e o repouso para a pressão
urbanística que o cerca. No entanto como o que é acertado tem sempre hipóteses
de ser sabotado, vem – como escusado brinde – a ideia de um parque radical. Não
acreditando na maldade da ideia só posso acreditar na ausência de uma reflexão
cuidada e, sobretudo, de diálogo com quem lá mora. Como é possível plantar numa
zona onde tanta gente vive um foco de poluição sonora que, não é necessário ter
dons de prestidigitador para perceber que noite após noite os moradores terão
como brinde o som dos rolamentos e que o efeito de túnel do espaço entre as
construções levará até bem longe esses mesmo ruído? Como é possível plantar
numa zona sem problemas os problemas? O que se ganha com isso? Como será
possível aos professores que se desmultiplicam para arranjar estratégias para
os alunos não faltarem às aulas, numa zona cercada de estabelecimentos de
ensino, convencê-los a ficar na escola quando ali ao lado há um parque que
convida a não estudar, a não cumprir?
Vou esperar um pouco até me
passar esta zueira na cabeça. Pode ser que afinal seja apenas um sonho.
Daqueles maus, muito maus.
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