O princípio



É sempre bom começar. Quando começamos parece não haver passado. Começamos o ano com a resolução inabalável de deixar de fumar, começamos o ano letivo com a disposição de “este ano é que vai ser”, começamos uma nova relação amorosa com a convicção de que aquela é que é realmente a mulher da nossa vida.




Eu começo a colaboração com o DG com muito gosto e com a sensação de que vai ser uma coisa boa. Um pensamento tonto mas próprio de um começo. Previsível e desculpável. Deixo já a minha “declaração de interesses”: sou vitoriano desde que tenho consciência de mim. Um amor monogâmico como qualquer bom amor terá de o ser, um sentimento que partilho com outras dezenas de milhares de sócios e adeptos do Vitória. Nós somos assim, essa é a nossa força, a nossa característica. (Nunca percebi o mau gosto de se falar em ADN: o Vitória é ácido desoxirribonucleico? Que disparate quando se tem uma língua inesgotável como a nossa língua portuguesa!). Retomando: sou assim o produto de um meio fervoroso e apaixonado pelas suas coisas. Penso ter deixado aos que de mim descendem o mesmo sentimento vitoriano. Era a minha obrigação. Poderia ter deixado uma herança mais proveitosa, interesseira, mas leguei o amor às coisas nossas. Muitas vezes trágico? Claro, mas qual dos grandes amores da literatura não é trágico? De repente não me lembro de nenhum.




Para o Vitória este é também um começo. E as coisas até estão a correr muito bem o que, bem vistas as coisas, não é assim muito recomendável. Adeptos incorrigíveis como nós vão já pensar – por muito o desejarem – que vai ser sempre assim, sempre a somar. E não vai. Já passamos por este filme (pelo menos eu) demasiadas vezes para perceber que existirão mais à frente (infelizmente) momentos maus. E então o que era excecional passará, com a mesma ponderabilidade, a ser péssimo. E lá iremos voltar ao mesmo e os treinadores e presidentes de facebook irão destilar a sua frustração e veneno num ódio evitável e em teorias da conspiração mirabolantes. Isto não é o nosso ADN (!) dirão então alguns mancos na sensatez e na língua portuguesa. Em bom rigor, para sermos melhores, só nos faltaria saber sofrer mais silenciosamente. O que seria já um nível de superlativo nível de amor e de libertação. Mas como o nirvana, no budismo, só muito poucos a ele conseguem chegar.




E se pensarmos bem este começo, racionalmente, não auguraria nada de extraordinário. Sem o To-Zé, sem o Dodô, com um estaleiro de luxo inativo (André, Wakaso, o talentoso e incompreensível Ola John, o jovem que veio do Porto) só nos restaria a rapaziada do ano passado que tantas vezes se mostrou perdida. Estranhamente, ou talvez não, todos ocuparam o lugar como se o conhecessem desde sempre. Há sempre alguém para receber a bola e até o Pêpê parece mais rápido. Mérito seguramente de um treinador competente e focado como Ivo Vieira. Na minha pobre cabeçita de presidente de bancada, orgulhosamente sem ADN, começo a pensar (para me aperrear interiormente) quem vai ser afinal vendido em dezembro. O supersónico Tapsoba, o deliciosamente frágil Joseph, o “igual a nós” Miguel, o granítico Al Musrati? Julgo perceber que o Vitória precisa sempre, por época, de pelo menos três milhões de euros para fazer face ao orçamento deficitário. Enquanto nos “três” do costume isso nunca é problema já que o vergonhoso sistema de receitas televisivas e o beneplácito bancário e social os alivia com solicitude, nós estaremos sempre entregues a nós próprios, sem contemplações, ajudas, perdões. Que vão, se tiverem que ir, os anéis ... mas que fiquem os dedos das mãos que entrelaçamos ao gritar Vitória! Ano após ano.


Publicado in Desportivo de Guimarães, a 13 de agosto de 2019

Imagens de pinturas do National Football Museum:
 Chris Holweel (1994), desconhecido, Cecil Beaton (1955) e Daphne Chart (1953)

Comentários

Mensagens populares