Ser e parecer
“O decoro é uma forma de preservar o segredo (...). O decoro é introduzido na sociedade para velar os defeitos de cada pessoa.”
Agustina Bessa-Luís. Dicionário imperfeito. 2008.
Pelos vistos a 1 de maio do ano 62 a.c. a segunda mulher de César organizou uma festa só para mulheres, uma espécie de girls night. Diz-se que nessa festa participou um apaixonado da bela mulher de César que entrou na celebração disfarçado de tocadora de lira. Descoberto o embuste o atrevido foi expulso da festa mas, nem mesmo assim, César perdoou à mulher, separando-se dela. Daí resultou a expressão à mulher de César não basta ser séria, tem de parecer séria.
O mais provável é que César estivesse farto da mulher e o que aconteceu deu-lhe um imaginativo pretexto para a despachar. É, mesmo assim, uma hipótese bem menos drástica do que a do rei inglês Henrique VIII que usou argumentos canónicos para se separar de Catarina e casar com Ana Bolena. O Henrique era um homem de temperamento difícil e acabou, mais tarde, também por se separar de Ana, momentos antes de lhe cortar a cabeça. A impunidade da violência doméstica no seu esplendor.
Henrique e César perceberam, com 1600 anos de diferença, que interessava mais o que parecia do que efetivamente o que era. O que foi para eles absolutamente central foi o pretexto, muito mais do que o ato. Um inventou um aforismo, outro uma Igreja. Particularidades. Todos nós, num grau mais suave, nos preocupamos mais com o que parece do que com o que é.
Confesso, sem grande remorso, que muitas vezes ajo de forma distinta daquilo que efetivamente sinto. Os mais “puristas” chamar-lhe-ão hipocrisia eu chamar-lhe-ia sensatez; a Agustina, na sua habitual elegância, designou esse comportamento por decoro. Se dissermos sempre aquilo que pensamos a vida em sociedade seria impossível, até porque muitas vezes o que pensamos está errado. A cautela obvia o erro. E, pessoalmente, cada vez tenho menos paciência para quem está continuamente a dizer tudo o que sente sob o pretexto de ser transparente. O remédio é respondermos na mesma moeda. Normalmente resulta.
Na verdade, aquilo que somos só é (claramente) significativo no que parecemos ser para os outros. É a vida, não vale a pena tentarmos dar a volta à situação.
Há uns meses escutei, sem querer, juro, uma discussão conjugal em que a mulher atirou em tom ameaçador ao homem, para rematar a discussão, tu não me conheces. Ora a mulher no calor da discussão confessou candidamente que nos (talvez) quarenta anos que levavam de casados o homem conheceu uma mulher que não era ela ... mas uma representação dela. Brutal.
O ser e o parecer é, numa escala mais dramática, um jogo político. É com as pessoas e é com os países. Os EUA matam o general iraniano para, disse Trump, prevenir. Os iranianos mandaram os mísseis para, segundo o líder supremo, retaliar. Mas no fundo ambos estão felizes com o teatro. Até parece combinado entre os dois. Trump lança-se com este gesto de força para a campanha e já ninguém fala do impeachment, Ali Khamenei vê desaparecer uma ameaça civil ao seu poder e ganha o pretexto para suprimir, ainda mais, a liberdade a milhões de iranianos fartos das farsas eleitorais e dos outros milhões que clamam por vingança e mais puritanismo religioso.
Os dois esforçam-se por fazer parecer aquilo que não é, só que, neste caso, sem decoro nenhum.
Mas a diferença entre o ser e o parecer não nos deve, de modo algum, angustiar.
Apesar de não gostar nada de melão – ou talvez por causa disso – abomino a encenação que os entendidos fazem na escolha do fruto. Ora cheira, ora apalpa, ora escuta, ora acaricia.
O que é preciso e urgente é abrir o melão! seja na fruta ou nas relações humanas. Ainda hoje, para mim, não há nada de mais interessante do que conhecer outra pessoa ... mesmo que seja aquela que há bastante tempo conheço.
Publicado in O Comércio de Guimarães a 15 de janeiro de 2020
Imagens do filme "Júlio César" de 1953, realizado por Joseph L.Mankiewicz
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