ORGULHO E PRECONCEITO
Jurei a mim mesmo, durante anos, que iria resistir à tendência pelo pessimismo e pela crítica ao presente que acompanha sempre as sentenças dos mais velhos. Saberia que teria que fazer um enorme esforço para suportar e contrariar essa tendência. Isso sempre foi algo que, enquanto novo, me incomodou. Retive esse incómodo na memória comportamental na tentativa de poupar aos futuros jovens aquilo que, enquanto jovem, tanto me incomodou.
E assim o tenho feito, ou, no mínimo, procurado fazer. Mas olho para as coisas, para os acontecimentos, para a realidade e só vejo desgraça e falta de esperança. A realidade é dominada pelo radical e pelo grotesco. Só isso é assunto. Tanto nas redes sociais, como na informação dita respeitável. As boas notícias quando existem (e que serão muitas, tenho fé) são um fugaz rodapé. Não interessam, não alimentam o algoritmo, não dão visualizações e o dinheiro que isso envolve. Tudo se radicaliza então, pois a realidade ou é preta ou é branca, já ninguém consegue ver nada em tons de cinzento. Aliás o cinzento transformou-se num adjetivo pejorativo, quando nada será, afinal, completamente preto ou completamente branco. Os matizes do preto e do branco é que nos tornam diferentes e dignos de interesse. O monocromatismo é um tédio.
Passei a adolescência e a idade de jovem adulto nos anos 80. Li com gosto nas férias o livro de Pedro Boucherie sobre o assunto e dele tirei particularmente gozo, quanto mais não fosse pela recordação cuidada, a escrita agradável e ritmada dos eventos e tendências de então. Eu estive nesse benigno furacão um pouco mais do que o autor e tenho uma enorme saudade (cá estou eu a ser velho) desse período da minha vida e da vida coletiva portuguesa em que tudo era possível, positivo e alcançável. Ser-se adolescente é ver a vida pela primeira vez, na sua dimensão complexa, é descobrir e experienciar aquilo que de bom ou de mau ela nos proporciona. É errar e aprender. Tudo parece, então, sempre novo. E essa altura de liberdade e descomprometimento casava bem com a aprendizagem e com aquela década.
Existia, nos anos 80, muito mais preconceito do que agora. Por exemplo a homossexualidade, em Portugal, só foi despenalizada em 1982. Mas, sinceramente, não me recordo de (pelo menos nos meios que frequentava) além de um ou outro dichote mais homofóbico (a palavra, provavelmente, não existiria então) ter censurado ou ostracizado um colega meu que lhe desse para esse lado. Mais raparigas sobram para nós, dizia-se e pensava-se então de forma perfeitamente utilitária. Ou seja, o preconceito era, frequentemente, mais cénico do que absoluto. Não me lembro de ninguém encetar uma cruzada contra ou a favor da homossexualidade, por essa altura. Era o que era. Convivi, quase sempre, em meios em que as pessoas eram de esquerda, e alguma até da mais extremada. Discutia horas e horas questões ideológicas sem que, alguma vez, me passasse pela cabeça deixar de ser amigo das pessoas que tinham visões políticas opostas às minhas. A eles igualmente, creio, isso não lhes passaria pela cabeça. O único critério para ser amigo de alguém era se a pessoa tinha interesse e sentido de humor, se não era um imbecil, tudo o resto era ultrapassável e, sobretudo, estimulante.
O preconceito não é necessariamente mau. O que pode ser verdadeiramente mau é o que fazemos com o preconceito. O preconceito pode ser útil como o espírito de sobrevivência; o segundo afasta-nos dos perigos, o primeiro do aborrecimento. O preconceito deve ser encarado como a luz da gasolina que acende no nosso carro: é um aviso.
O preconceito ajuda-nos a escolher o caminho que melhor nos serve. Não gosto de pepino. Não me ponham pepino na salada, por amor de Deus! Não gosto das pessoas que dizem “como eu costumo dizer”, são pretensiosas e impossíveis de aturar, não existem para ouvir, existem apenas para falar. Tenho preconceito contra quem me aperta a mão ao de leve, julgo-os logo não confiáveis. O preconceito musical levou-me a aproximar de pessoas interessantes que me abriram novos caminhos e afastou-me de outras com as quais não aprenderia, certamente, coisa nenhuma.
O preconceito é como o colesterol: há um bom (HDL) e há um mau (LDL). E só esta afirmação encerra em si mesma um preconceito. Eu sou, pelo lado HDL, preconceituoso contra o preconceito LDL: fico logo de pé atrás quando se olha para o outro de viés só porque ele é gay, ou preto, ou judeu, ou muçulmano, mas também me irrito com aqueles que fazem das suas opções sexuais, biológicas ou religiosas, uma espécie de reduto de catequização em que a discordância é logo entrincheirada como qualquer coisa fóbica. Há pouco tempo fui até acusado de homofóbico por um gay que avançou para mim de forma um pouco atrevida. Passei-me, mas, no fundo, e apesar da idade, ainda consigo (aparentemente) ser atraente. Para os homens, é certo, mas, ainda assim, não deixa de ser animador. Há que, mesmo nestas questões mais pessoais, olhar pelo lado otimista da coisa, pois a realidade está-me a tentar arrastar, dia-a-dia, para o LDL do preconceito. Vou ter de cortar na carne gorda, no divino toucinho. Força, tu consegues.
Publicado in O Comércio de Guimarães a 17 de setembro de 2025
Imagens do filme Orgulho e Preconceito, de Joe Wright, 2005
“- O que mais lamenta no envelhecimento? – A lembrança de quando era novo.”
Filme de David Lynch. Uma história simples. 1999.
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