OBRIGADO SOU EU
A língua portuguesa é complexa e fascinante. Tão complexa que mesmo aqueles que julgam possuir uma sólida cultura linguística cometem, frequentemente, o seu deslize. Tão fascinante que Pessoa a elevou à categoria pátria: a nação que pode não resistir a invasões, a depressões circunstanciais do seu povo, mas que ao viver nas palavras ganha o estatuto e a força de uma eternidade.
Os ingleses, creio, não cometem tantos atropelos à sua língua, como nós. A língua inglesa tem uma previsibilidade matemática que a nossa não tem. A nossa difere sempre no pormenor. Além de uma gramática que é mais complexa que um quebra-cabeças: uma consumição (adoro esta expressão já em desuso).
A língua evolui claro. Já não há funileiros, pois já ninguém compra funis de lata. Aliás poucas casas já têm funis. Nem de plástico e tanto jeito que eles sempre dão. O funil é um objeto da sustentabilidade, outra das palavras roubadas ao inglês, quando para nós, há umas décadas, a sustentabilidade era mais de aviação do que de ambiente.
Relembro, a esse propósito, já com alguma dificuldade de memória, o meu primeiro trabalho político, como jovem deputado, na primeira metade da década de 1990, na Assembleia Municipal. Fui designado, junto com outros deputados, para rever a Postura de Lixos e Higiene. Na altura ainda não havia muito cuidado com a força das palavras: a postura era conhecida como a “postura do lixo”. Ainda para mais havia a lixeira de Gonça, portanto tudo certo. Os meus companheiros de trabalho, cada um pertencente a uma diferente bancada parlamentar, eram todos bem mais velhos do que eu. Naquela comissão eu trouxe palavras e expressões novas, fruto da minha formação técnica. Desde logo: resíduos sólidos urbanos. Eles acediam, maravilhados, a cada novidade minha. Na verdade, eu fui um pouco moderninho demais e aquelas disposições camarárias cheias da palavra lixo começaram a abonecar-se em novas expressões que não tinham tanta piada. Contribuí, confesso, para assassinar aquela crueza da palavra lixo e hoje dava tudo para a encontrar no meio da minha papelada amarelecida e pedir-lhe desculpa.
Guardo sobretudo memória do Dr. Luís Teixeira e Melo com quem, várias vezes, ficava a conversar, à noite, após a reunião da comissão. Ele ia ainda ao escritório concluir qualquer coisa pendente. Recordo a sua deferência única de cavalheiro que me fazia sentir com mais importância do que aquela que teria, recordo o seu elegante cinismo que perdia qualquer carga negativa pois transmutava-se (sempre) em humor. E recordo-o com saudade.
Uma das palavras com mais cambiantes ao longo do tempo é a palavra empregado. Quando se tem um emprego, se desempenha uma função numa estrutura, é-se empregado. Tão simples e objetivo quanto isso. Mas a palavra ganhou com o tempo um tom de desadequada sobranceria. Já não parece bem, já não se chama empregado a ninguém. A seguir ao 25 de abril o empregado passou, por via do marxismo reinante, a trabalhador: “os trabalhadores da Efacec exigem melhores salários” ao patrão. A relação patrão/trabalhador era, assim, mais tensa do que a relação patrão/empregado, era a luta de classes. Passada a euforia revolucionária achou-se por bem passar tudo a funcionário. Em repartições, amiúde, alguém se abespinhava pelo pessoal da fila dizer o “empregado dos correios”. Recebia logo resposta torta: “funcionário dos correios se faz favor”. E caso o pessoal da fila mantivesse o despautério, o empregado deixava de funcionar e a fila emperrava. Sim, sim Sr. Funcionário, desculpe. Mas funcionário começou também a parecer demasiado distante e chegou-se então ao zénite da consideração laboral: colaborador! Estes são os meus colaboradores, esta é a minha colaboradora e por aí adiante. Claro que tudo volta à estaca zero quando a coisa azeda. A fiel colaboradora passa, de sopetão, a empregada e o CEO a patrão. Zélia, a senhora é minha empregada, veja lá os modos, diz o (agora) patrão.
Mas esta é a riqueza da nossa língua: há sempre uma palavra à nossa espera, consoante as circunstâncias e a disposição. Não ter palavras disponíveis é como andar sempre com a mesma roupa. Aborrece-nos e aborrecemos os outros.
Agora palavras inglesas, que deslustram a nossa língua, é que não. Não é nada cool.
Na nossa língua – tirando o esgoto a céu aberto das redes sociais - até os erros nas expressões são maravilhosos. Quando alguém retribui um agradecimento com “obrigado sou eu”, em vez do “eu que é lhe estou agradecido”, tudo cintila afinal. O obrigado passa, por milagre, a ser alguém. Passa de verbo a nome e a complexidade da nossa língua mostra a flexibilidade intemporal das grandes línguas, das grandes pátrias, que dão ao português de Portugal palavras cheias de esquinas e ao português do Brasil, de Angola, uma redondeza impressionante nos vocábulos que partilhamos.
Obrigado sou eu a dizer obrigado às gerações que tornearam esta língua como o desvelo de um artesão.
“Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa. Porque há-de o comércio com os demónios ser mais fácil do que o comércio com a gramática?”
Bernardo Soares. Livro do desassossego.
Publicado in O Comércio de Guimaraes, a 12 de novembro de 2025
Imagens: Aquilino Ribeiro, Clarice Lispector, Fernando Pessoa e Vinicius de Moraes





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