CONTIGO VITÓRIA SEMPRE NOVO
Sempre
me irritou a maneira como algumas pessoas usam as redes sociais: umas vezes “de
cima da burra” dando opiniões como se fossem dogmas inquestionáveis, outras
vezes “debaixo da burra” atacando tudo e todos, porque ou são uns mamões, ou uns
incompetentes, ou uns interesseiros. Outros intervalam o de cima e o debaixo
com sabedoria para semear a discórdia tal e qual essa deliciosa personagem da
banda desenhada Astérix – o Detritus – que armava a confusão, punha todos uns
contra os outros e sorrateiramente saía do local: os mestres da intriga. Eu vou
procurar dar a minha opinião sobre o Vitória e o próximo ato eleitoral ao “lado
da burra”. Assim o consiga.
O Vitória
irrita o futebol nacional, sempre irritou, apesar daqueles que nos passam
ocasionalmente a mão pelo pêlo. Num sistema de interesses económicos montado
para favorecer o Benfica, o Porto e o Sporting, ter (já que falei do Astérix)
uma “aldeia gaulesa” inexpugnável a todos esses interesses é uma realidade que incomoda
e irrita os agentes desses mesmos interesses. Os clubes do sistema ainda
toleram outros parceiros cujos sócios e simpatizantes têm o clube da terra e
torcem também por um deles, não mais. Há coisas que um vitoriano não consegue
entender, lembro-me de uma conversa que tive com um taxista madeirense que
tinha um pendão do Marítimo no seu táxi, meti conversa com ele sobre o futebol
e espantei-me quando percebi que nesse fim de semana ele ia torcer pelo Benfica
já que a vitória sobre o Marítimo garantir-lhe-ia o título nacional. Fiz de
conta que não ouvi e mudei o rumo da conversa, pois um vitoriano não consegue
sequer perceber como funcionam aquelas cabeças. Por outro lado, apesar de haver
em Guimarães cada vez menos pessoas a gostarem de um dos três clubes do
costume, nós irritamos profundamente esses nossos concidadãos pois não temos a
fraqueza deles. Para nós o Vitória é uma identidade, assim como o é o nosso
Castelo, a nossa Senhora da Oliveira, a nossa história milenar enquanto brava
gente que sonhou um país e que o conquistou e que lhe deu o nome de Portugal. E
alguns desses vimaranenses meus conhecidos que têm essa fraqueza reconheci uma subtil satisfação quando descemos de divisão. Pensariam talvez que a gente ia
mudar de clube ou ia ter uma paixão bipartida (como se a isso se pudesse chamar
paixão) mas obviamente que não, só consegue pensar assim quem não é vimaranense
por inteiro. Nem que fossemos até ao regional seríamos vitorianos e se o clube,
por qualquer aventura mal calculada, um dia desaparecesse, tenho a profunda
convicção que iríamos todos deixar de gostar de futebol. Do nacional pelo
menos. É por isso que o nosso desânimo coletivo atual ou - pior - uma eventual divisão
profunda entre os associados do Vitória deixaria certamente radiantes os três
clubes do costume e os seus mais fiéis apaniguados.
A
nossa paixão pelo Vitória – que tanta inveja causa a tanta gente cujos clubes
têm melhores resultados desportivos – não cai, claro está, no domínio do comum.
Essa é, sempre foi, a natureza da nossa paixão que sempre nos manteve fiéis apenas
pelo orgulho de sermos nós próprios independentemente dos títulos. Apesar disso
todos deveremos ser capazes da lucidez suficiente para ter a noção de que este
clube centenário tem, no mínimo, a obrigação se perpetuar. De zelarmos para que
os nossos netos e bisnetos e trinetos tenham outras alegrias (e outras
tristezas certamente) que distingam o Vitória, que o engrandeçam e o tornem
mais forte e único e identitário como é.
É
muito difícil encontrar solução para travar uma camioneta desgovernada por uma
ladeira abaixo e o Vitória já foi uma camioneta desgovernada por uma ladeira
abaixo e não há muito tempo. Em 2012 o passivo do clube era de 24 milhões de
euros hoje, passados 6 anos, é de 9 milhões! E isso é uma obra notável das
equipas que estiveram à frente do clube, em particular do presidente da
Direção, nestes dois mandatos e que contou com uma voz atenta e construtiva de
um Conselho Fiscal que nunca se inibiu de o ser. Ganha jogos esse esforço de
gestão? Diretamente é capaz de não os ganhar mas garante o principal: que haja
futuro. Desmerecer esse esforço, troçar desse esforço, ou pior, duvidar desse
trabalho diligentemente efetuado é falar “de cima da burra” de forma muito
pouco responsável. E apesar das direções que passaram pelo Vitória nos dois
mandatos anteriores terem todo o mérito nós, os sócios, também tivemos mérito
pois aguentamos e apoiamos equipas com jogadores com salários modestíssimos,
demos-lhe alma e permitimos que alguns desses bravos rapazes que envergaram a
nossa camisola tivessem aqui a oportunidade da sua vida. Fizemo-los jogadores e
lucramos, eles cresceram e afirmaram-se aqui e deram ao clube o retorno
financeiro que nos ajudou enquanto clube. E o mesmo se passou com o grande
treinador que aqui tivemos. Foi a nossa profunda união num momento difícil que
nos permitiu não ficar desgovernados, não afundar sob o peso das dívidas em que
irresponsavelmente nos mergulharam e, vejam lá, até ganhámos uma Taça de
Portugal. Superámos, todos juntos, a humilhação de estarmos nas páginas dos
jornais por não ter dinheiro para pagar a jogadores, para pagar a água, para
pagar a luz, gozaram connosco como se fossemos um clube de aldeia,
irresponsável e não confiável e engoliram o despautério passado pouco tempo. Qualquer
dirigente de um clubezeco fazia então gala de nos chamar caloteiros e de nos
apoucar pela situação em que estávamos, sem qualquer respeito pelo nosso imenso
historial enquanto clube de primeira. Nós fizemos esse esforço comum, mas quem
esteve à frente do clube nesses anos de brasa lidou cara a cara com as
situações de incumprimento, com a necessidade de arranjar financiamento quando
ninguém confiava no nosso clube, dos imensos nãos que receberam, de à noite se
deitarem sem resultados visíveis de todo o esforço, de aguentar o escárnio dos
outros sem titubear, de conseguir travar por artes mágicas o plano inclinado em
que nos encontrávamos. Por mais apaixonados que sejamos convém não esquecer que
a camioneta tem travões e que cada um de nós deve dar o seu contributo para que
o grande coletivo que somos não perca nunca os travões. Como manifestamente há
pouco tempo os perdeu e como pode, se formos na conversa dos Detritus, voltar a
acontecer.
Os
processos democráticos podem ter muitos defeitos, o principal é o de obrigar quem
nos governa decidir não em função do que está certo, mas em função do que dá
certo eleitoralmente. Vemos isto na política, vemos isso também no futebol. Mas
os processos democráticos são aquilo que de mais civilizado existe. É dar ao
coletivo a voz e a possibilidade de escolha em que cada um é cada um e tem o
seu voto como a sua palavra mais imediata. O facto de aparecer uma lista
concorrente à atual direção é de saudar pela disponibilidade de alguns
vitorianos em procurarem dar o seu contributo para o nosso clube. De algumas
pessoas que nela conheço tenho a melhor das impressões pessoais, algumas mesmo
amizade, independente do juízo que delas faça sobre a capacidade de gerir um
clube como o nosso. É sempre bom haver um contraponto, uma visão diferente da
atual. Mas os processos democráticos exacerbam posições e tornam emotivo aquilo
que deveria ser um exercício de sensatez. Não posso deixar de lamentar que,
além da verborreia louca que sobre estas eleições circula, o candidato do
movimento Novo Vitória atire em todas as direções sobre pessoas que eu conheço e
cuja honorabilidade e dedicação ao Vitória é inatacável. E como os conheço
posso, sem reservas, sobre eles falar. Dizer-se que Isidro Lobo não devia
conduzir o processo eleitoral é venenoso e injusto (ele assumiu que não o
deveria fazer sem ter que o fazer, pois só com uma tremenda má-fé é que alguém
poderia duvidar da sua isenção no ato eleitoral), ou que José João Torrinha não
deveria declarar o seu apoio a uma das candidaturas (ele é vitoriano muito
antes de ser presidente da Assembleia Municipal e certamente antes de ter
filiações partidárias, tentar coartar a opinião desse vitoriano é descabido e
tonto), ou ver fotografias de amigos meus que sempre colaboraram no Vitória de
forma genuína e graciosa aparecerem em montagens divulgadas nas redes sociais como
se tivessem cometido crimes por terem dedicado tempo ao Vitória é contribuir
para perdermos os travões coletivamente. Impedir o sócio e meu amigo Belmiro
Jordão de ir para a tribuna presidencial também não me pareceu nada bem e foi
uma atitude estúpida e sobretudo escusada. No Vitória não falta gente sem
travões, faz parte do pack ser vitoriano, mas importa sobretudo que as
candidaturas e os candidatos não deem exemplos disso mesmo.
Nestas
alturas há a popularucha tendência de medir o vitorianismo pelo número de
sócio. Esse é um dos absurdos propalados em altura de eleições. Eu, por exemplo,
não me acho mais vitoriano do que as minhas filhas nem do que os meus alunos. Pelo
contrário muitas vezes vejo neles aquela paixão incontrolável e desmedida que
cria, como em mim criou, as raízes de uma identidade forte como a nossa.
Ataca-se o atual presidente do Vitória por isso mesmo, por não gritar, por não
ter um número de sócio mais baixo, por não ser tão apaixonado como os adeptos
nas bancadas. E ainda bem. Eu acho que o papel que o papel do presidente não é
o nosso papel. Um presidente precisa de ser frio para não desesperar nos
momentos desesperados pelos quais passamos, precisa de ser calculista e hábil
para sobreviver num sistema montado para que só três clubes possam ganhar,
precisa de ser paciente para levar uma estratégia de sustentabilidade a médio e
longo prazo. Um presidente de um clube como o nosso precisa acima de tudo de
saber gerir e ter a tarimba para, como Indiana Jones, contornar as víboras que
nos ameaçam constantemente. E isso ele, em minha opinião, tem.
Eu
tinha um trauma futebolístico de infância e que era, como não poderia deixar de
ser, uma derrota com o Braga por 0-4 no nosso estádio há cerca de quarenta anos
atrás para a Taça de Portugal. Lembro-me de ser miúdo e estar enregelado até
aos ossos na bancada lateral pois os guarda-chuvas dos homens faziam com que a
chuva pingasse por mim abaixo imóvel perante aquela humilhação, chorei depois
em casa enquanto me secavam o corpo na impossibilidade de me secarem a alma. Penso
que foi nessa altura que entrei para sócio pois apesar de ser vitoriano desde
que me conheço fiz parte – como muitos rapazes da minha geração – daqueles que
quando o pai não tinha oportunidade ou a pachorra para o levar ao futebol iam
para o estádio à espera que um “tio” nos pusesse a mão no ombro para entrarmos
sob o olhar complacente dos porteiros. Nunca fiquei cá fora, se ninguém me
viesse buscar ou faltasse ao combinado eu ia para a porta e entrava. No último jogo
no nosso estádio perdi finalmente esse trauma. Temos que ver as coisas sempre
pelo lado positivo e sempre convencidos que um vitoriano a tudo resiste. As
dificuldades tornam-nos, ao contrário de outros, mais fortes.
Há
um aforismo com o qual eu simpatizo e que diz que “não se deve atirar fora o
bebé com a água do banho”. E é isso que eu pretendo fazer no dia 24 de março ao
confiar novamente na atual equipa diretiva.
Se
o Vitória foi bem conduzido nestes seis anos do ponto de vista financeiro,
poderia eventualmente ter sido melhor conduzido do ponto de vista desportivo,
apesar de – não esqueçamos - termos conseguido o primeiro grande título do
clube na sua longa história; mas só se consegue atingir o segundo objetivo
depois de atingido o primeiro. Estou convencido que a atual direção tem
condições para prosseguir para o segundo objetivo de uma forma mais sustentada.
No entanto é preciso pensar muito bem nos passos a dar, por isso vou dar não
uma de “treinador de bancada” mas uma de “presidente de bancada”.
Não
vou, já se percebeu, no cântico da Champions
League, preferia antes ir numa simples balada de projeto. As pessoas que
têm dado o seu melhor pelo Vitória e que aguentam (com uma inacreditável
resiliência) serem chamados de todos os nomes possíveis e imaginados por
pessoas que não têm o mínimo de decência pessoal ou empatia, e não conseguem
ver os inúmeros obstáculos que um clube com as características do nosso sempre
encontra, precisam a meu ver de uma estrutura de futebol profissional que tenha
um conjunto de pessoas competentes e experientes que trabalhem dia a dia por um
objetivo ambicioso mas, sobretudo, exequível, para além naturalmente das que já
existem. A maioria dos vitorianos gosta de um futebol bonito e de ataque, a
maioria dos vitorianos quer acabar com estas oscilações classificativas e
afirmarmo-nos como o quarto clube mais forte (apesar de sabermos que existem
outros com as mesmas ambições), a maioria dos vitorianos não gosta muito de
jogadores emprestados (e esta direção fez este ano um esforço enorme nesse
sentido, apesar de desportivamente não ter compensado não quer dizer que a política
seja errada), a maioria dos vitorianos gosta de profissionais briosos. Tendo em
conta estas premissas temos de trabalhar sobre isso mesmo na escolha de um
treinador que tenha capacidade para levar a bom porto esses objetivos e que
aguente estoicamente a má disposição crónica de alguns associados (lembro-me
perfeitamente de o Rui Vitória ter levado com lenços brancos quando as coisas
correram menos bem), de ter jogadores que encaixem no modelo de jogo definido e
que, muito mais do que o perfil técnico, tenham um perfil psicológico certo
para saber jogar no Vitória, para aguentar a pressão, para saber liderar, para
não baixar a cabeça quando um bando de energúmenos lhe vandaliza o carro ou lhe
chama nomes. E isso não pode ser cada um de nós a definir porque dá mau
resultado. Não acredito que a maioria dos vitorianos não tenha apreciado a
compra de jogadores que se fizeram nos últimos tempos. O Wakaso, os promissores
Sturgeon e Francisco Ramos, a compra definitiva de uma muralha como Pedro
Henriques ou de um criativo como o Hurtado, agora o Whelton. No entanto alguém
por nós tem de saber se os jogadores encaixam, se têm caráter para resistir, se
se consegue arranjar um núcleo de jogadores que sem serem craques saibam ser
líderes, saibam transmitir confiança aos outros colegas craques para jogarem. O
Vitória tem de saber o que quer para não se transformar num cemitério de jovens
talentosos como o Kiko, o Hélder, o João Afonso, o Marcos Valente, que saltam
da A para a B, da B para a A, de empréstimo para empréstimo. E para isso é
necessário organização e alguém que pense por nós qual o jogador adequado, qual
o treinador adequado, se este jogador tem condições para agarrar a oportunidade
na equipa principal ou se a sua juventude e inexperiência aconselha a esperar.
É esse, creio, o salto que falta dar. O problema desta época não foi o de
termos jogadores pouco talentosos (ao contrário de muitos vitorianos eu acho
que temos um bom plantel) foi o de não termos um núcleo de jogadores fortes que
se impusessem e fossem capazes de construir um balneário forte. Eu acho que se
pode construir uma grande equipa à volta de um jogador como por exemplo o André
André, não porque ele seja um craque mas sobretudo porque é um jogador
inteligente e determinado. E tem de haver uma estrutura profissional a pensar
isso: o fulano A é muito bom mas é burro, não serve, o fulano B é habilidoso
mas é indisciplinado também não dá, já o jogador C é um rapaz calmo e que se
sabe impor e que é capaz de servir para o Vitória. Mesmo nunca havendo certezas
há certamente gente que conhece estes meios, os jogadores e os seus perfis.
Esse salto pode ser dado e a atual direção tem, parece-me, que potenciar o que
alcançou refletindo nas coisas que fizeram para que corresse bem mas, afinal,
não correram. Apesar do período eleitoral não ser dado, infelizmente, a grandes
reflexões estratégicas os atuais dirigentes devem aprender com os erros e
perceber que o sólido trabalho que fizeram nas finanças e na credibilidade do
clube pode também ser consolidado plenamente na parte desportiva. Sem a loucura
de que vamos conquistar o mundo a partir de Guimarães, mas que, com paciência e
método, conseguiremos conquistar o país, como já o fizemos outrora. Não vamos é
inchar como o sapo e julgarmos que somos o boi, porque não o somos.
Atrever-me
a partilhar uma opinião através de uma rede social em tantas linhas é
certamente uma temeridade ingénua. Quando o que está a dar é o insulto curto,
ou o insidioso veneno, é possível que o que eu quis dizer se transforme,
afinal, numa entediante homilia. É possível. Mas quanto mais não seja estou
mais aliviado e a torcer para que este ato eleitoral não dê aos inúmeros
adeptos de outros clubes que nos detestam o alento de nos ver divididos, nem às
larvares casas do Benfica, ou do Porto, ou do Sporting, a coragem que lhes
falta para eclodirem e nos envergonharem. Estou convicto, pelo menos pelas
pessoas que conheço, que me vou sentar no estádio, após o ato eleitoral, irmanado
como sempre com as pessoas que não partilham atualmente da minha opinião porque
somos acima de tudo vitorianos. Recuso-me em atirar para aqui o meu número de
sócio exatamente por não me sentir menos sócio do que os que me antecedem na
numeração, nem superior em vitorianismo aos que me sobrevêm. Porque no fundo
dentro de mim, como em muitos de nós, resiste inamovível a identidade de uma
pertença a uma história e cultura comum corporizada no amor ao Vitória, e isso
é o mais importante. Porque no fundo em todos nós ainda resiste o rapazinho que
ultrapassava a timidez por amor ao seu clube quando dizia “ó senhor importa-se
que entre consigo?”.
As imagens utilizadas neste artigo pertencem ao magnífico O DIA V e tem a autoria dos inspirados fotógrafos Miguel Oliveira (preto e branco), Ricardo
Leite e Ricardo Rodrigues (a primeira e a última). A exposição e livro que O DIA V corporizou em 2013 resultaram de uma parceria entre a Muralha, o Cineclube e o Conselho Vitoriano,
um projeto inesquecível no qual tive grato privilégio de o pensar e coordenar.
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