Sensatez Lda.

“Ela era enfermeira, começou a sua carreira colocando arrastadeiras debaixo do cu dos velhos, depois casou com o guia do povo e passou a ser cientista (...)”
Antonio Tabucchi. Bucareste não mudou absolutamente nada. 2009.




Há adjetivos que se vão perdendo no caminho: sensato é um deles. Há muitos anos atrás essa era uma das qualidades psicológicas a que se dava valor. As avós diziam aos netos gosto muito daquele teu amigo, pareceu-me um rapaz sensato; os pais diziam aos filhos que haviam apreciado muito a namorada pois ela se lhes afigurava uma rapariga sensata. A sensatez não era propriamente exaltante mas dava tranquilidade à avaliação que das pessoas se fazia. Talvez essa falta de excitação que o adjetivo provoca o tenha condenado nos dias de hoje.

A sensatez nunca foi uma qualidade absoluta por si só, mas antes uma mistura de outras qualidades igualmente adjetiváveis como diligente, atencioso, disciplinado, calmo. Uma espécie de tutti frutti de qualidades inatacáveis – digo eu - que nos dava conta de alguém confiável. Mas isso era dantes.
Na bolsa de valores dos adjetivos o sensato está – como dizem os mercados – no vermelho. Em ascensão vertiginosa está outro adjetivo psicológico: ambicioso!
É curioso como a ambição sofreu o caminho inverso ao longo das últimas décadas. Como eu parei no tempo dos adjetivos ... ambicioso é para mim, ainda hoje, uma qualidade negativa já que ambição por si mesma tudo justifica, é o reinado do propósito sobre os meios. É o execrável reinado do eu. E como a bolsa de valores dos adjetivos é volátil como a bolsa de valores das coisas esqueceu-se o sensato e incensou-se o ambicioso.



Dizer-se que alguém é sensato é hoje raro e até bizarro. Daqui a nada parecerá insulto. No entanto o mundo só melhora com bom senso. Martin Schulz foi sensato em fazer uma coligação com a CDU apesar de ter prometido o contrário aquando das últimas eleições legislativas alemãs, o que acabará certamente com a sua carreira política mas permitirá ao centro da Europa não capitular perante o jugo populista. Os Beatles foram sensatos em acabar uma curtíssima carreira discográfica de apenas 7 anos (1963-1970) imortalizando a sua música pela genialidade das suas canções e não por se exibirem em palcos como peças arqueológicas sem qualquer interesse que não o de posarem perante plateias mais preocupadas com a foto do Instagram do que com aquilo que a música lhes poderia transmitir. Churchill foi sensato ao prometer aos ingleses no seu discurso na Câmara dos Comuns, a 13 de maio de 1940, “sangue, sofrimento, lágrimas e suor”, pois era a única coisa que ele sabia que podia prometer perante a capitulação dos estados europeus sob a máquina militar de Hitler, o silêncio americano que então se fazia sentir e o pacto germano-soviético que vigorava; é possível que se existisse facebook na altura Churchill fosse apelidado de “pouco ambicioso” pelos valentes do costume. Era provável. O comandante Seixas Louçã foi sensato quando a 25 de abril de 1974 se recusou a abrir fogo sobre as tropas de Salgueiro Maia que se aproximavam do Terreiro do Paço; apesar de ser um militar habituado a cumprir ordens e não estar ligado ao movimentos das forças armadas, usou da sua sensatez para contrariar uma ordem estúpida que poderia ter mergulhado o 25 de abril em sangue. É sensato que um político exiba publicamente a sua orientação sexual para não alimentar o jogo de sombras e a ideia de vergonha de que o preconceito se alimenta. É tranquilizador que os militantes tenham escolhido um político sensato para liderar o PSD em vez da valentia aparente de iluminados como Pinto da Luz ... mais um do rol dos ambiciosos que tudo se propõem a ganhar, até não o fazerem. Mas que exigem isto e aquilo e aqueloutro porque são, dizem eles, ambiciosos.
Dizer-se que o mundo melhora com ambição é a mais descarada das mistificações em voga.



Ninguém nasce sensato. Berramos como desalmados quando temos dor ou fome, mesmo que isso não adiante nada além de contristar ainda mais uma mãe impotente. A sensatez é uma construção mental feita de experiência, inteligência e cultura. E que dá trabalho e que aparta de nós o egoísmo e a fanfarronice tão próxima da nossa condição animal.
Mas a verdade é que ninguém vai aos noticiários pela sua sensatez, ninguém é entrevistado por ter passado a bola ao colega que estava em melhor posição para fazer golo, o futebol não está por agora para os sensatos ... ouça-se (profilaticamente) o Bruno de Carvalho e perceba-se de como a ambição é um eufemismo para controlo ditatorial.
Resta aos sensatos a tranquilidade de não aparecerem nos noticiários porque roubaram, porque enganaram, porque corromperam, porque se deixaram corromper, porque como Ícaro tanto ambicionaram o Sol que derreteram.


Publicado in O Comércio de Guimarães: 14 de fevereiro de 2018

Imagens: Piet Mondrian (1872-1944). De cima para baixo:

Composição A (1923)


Comentários

Mensagens populares