A PASSADEIRA ROLANTE


Li, na internet (The ancient and suprising history of the treadmill, Gabriel Paolo Ricafrente, 2015), a história da passadeira rolante (hoje) tão comum nos ginásios ou nas provas médicas de esforço. A sua invenção – aplicada a humanos - remonta ao século XIX como forma de punição de presos em cadeias britânicas. A designada everlasting staircase, concebida por um engenheiro inglês, era uma geringonça na qual os presos eram obrigados a estar galgando degraus sem sair do sítio sob o olhar dos guardas prisionais. A crítica pública do castigo através da escada sem fim – que assentava nos princípios físicos daquelas que seriam as primeiras passadeiras rolantes concebidas há cem anos – foi abolida em 1898 devido à sua crueldade.



Em relação a tudo aquilo que se passou no Vitória-Porto tenho a nítida sensação que nos encontramos numa passadeira rolante – das antigas – e por mais que corramos, por mais esforço que façamos, não saímos efetivamente do sítio. E eu quero, como vimaranense e vitoriano, sair desta passadeira rolante onde nos meteram e onde (ainda) permanecemos.

Não é fácil aguentar a hipocrisia, não. Não é fácil aguentar o aproveitamento sobre uma realidade comum em que a fava, como de costume, nos saiu a nós. No meio de tanto lixo ouviram-se coisas novas, desalinhadas, sensatas. António Lobo Xavier referiu que também ele se sentia culpado pois em dezenas de situações em estádios de futebol pactuou, pelo seu silêncio, com atitudes reprováveis. Fechou os olhos ao insulto, à má criação, ao despudor ... porque era futebol. E eu acho que nós, vitorianos, devíamos pensar igualmente como ele. Não transigir e aproveitar este terramoto que em cima de nós se abateu para sermos mais interventivos e não fechar os olhos aos nossos adeptos que atiram cadeiras, aos nossos adeptos que insultam e agridem outros só porque são de um clube diferente, aos nossos adeptos que fazem com que o nosso clube seja continuamente castigado, aos nossos adeptos que caem sistematicamente nas armadilhas que nos montam. E armadilhar o Vitória é, pela natureza apaixonada dos seus adeptos, a missão mais fácil do mundo. É só olhar para o nosso histórico.



No meio da desonestidade e da hipocrisia que nos foi caindo em cima não demos, inebriados com as declarações da gente muito pouco recomendável que procurou parasitar o nosso sentimento de abandono e solidão - e o André Ventura foi o caso mais notório-, por pessoas que foram falando bem sobre o caso como jornalistas e treinadores de futebol que remaram contra a maré. São também disso exemplo Miguel Carvalho n’ O Jogo “(...) Tal não invalida que o Vitória olhe para dentro e discuta o problema. Mas pode dizer-se o mesmo dos outros para quem o preconceito é utilitário: depende dos dias, das circunstâncias e da cor das camisolas” ou o Pacheco Pereira numa visão mais abrangente “(...)Até porque este tipo de surtos de indignação só favorece alguns grupos radicais e prejudica qualquer combate eficaz contra o racismo real” escrito no jornal Público para o qual muitos de nós viraram as atenções, de forma tonta, devido à capa satírica de um suplemento. Sim, devíamos prestar mais atenção ao que se disse e não embarcar no combate cego a todos aqueles que nos procuraram apoucar, mais por hipocrisia e inveja do que por convicção. Tínhamos ganho certamente em estarmos calados mais vezes. A estupidez alheia ficaria bem sozinha.



internet é uma invenção notável do génio humano. As redes sociais ligaram pessoas cujo contacto, de outra forma, se perderia. Elas não são o mal em si mesmo; a utilização que delas fazemos é que pode ser, como é, problemática. Como todos sabemos as redes sociais tornaram-se num escape de ódios e de mentiras, em vez de constituírem um instrumento de partilha reflexivo e democrático. Sinto-me, deveras, envergonhado de ter respondido como respondi nas redes sociais a algumas afirmações que “contra nós” foram fazendo. Arrependo-me amargamente por o ter feito. Ainda para mais quando vi vitorianos que eu conheço bem – e que estimo pelo caráter - serem atacados por divergirem da revolta coletiva e da narrativa, que em nossa defesa face à hipocrisia reinante, fomos construindo. Os populismos começam assim. Por uma evidência que incomoda faz-se tábua rasa de tudo e de todos: a manipulação pelo ódio é uma semente resistente que frutifica. E nós que glorificamos tanto o Rei D. Afonso Henriques – que construiu, a partir de Guimarães, este belo e antigo país – não paramos para pensar que ele não deve ter atacado tudo e todos só porque sim. Quantos vezes, julgo, ele terá parado os seus exércitos para reagrupar, pensar, e decidir estrategicamente o que fazer em face de um inimigo mais numeroso e/ou organizado. Não herdamos, certamente, esta sua frieza, mas poderemos, de futuro, resgatá-la aos nossos genes.



Estive nas Aves. Estive na bancada central, rodeado por avenses que nos respeitam porque nos conhecem. Desejo-lhe, do fundo do coração, toda a sorte para o final do campeonato. A felicidade de ter assistido ao jogo não teve nada a ver com os nossos golos. Ajudou é certo. A felicidade que senti nesse jogo teve mais a ver com o facto de eu ter testemunhado, uma vez mais, a paixão ordeira e sincera de milhares de vitorianos que não se calaram por um segundo, que não regatearam à equipa um caloroso apoio nesta difícil situação que atravessamos. Se, em vez da resposta sistemática a quem nos ataca porque nos inveja, partilhássemos mais, nas redes sociais, os vídeos do apoio exemplar dos nossos adeptos na Vila das Aves, se partilhássemos (mais e mais) o tocante vídeo do abraço do miudito que enrolou a sua paixão ao clube no pescoço do Davidson, talvez estivéssemos a dar um passo decisivo para sair da passadeira rolante onde nos puseram e onde teimamos em ficar. Talvez. 


Publicado in Desportivo de Guimarães, 25 de fevereiro de 2020
Imagens: www.attendly.com; www.pftforum.com; jornal Público e página de Davidson Pereira.


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