BIODIVERSIDADE
“A escolha é feita automaticamente pela sobrevivência – ou pelo fracasso em sobreviver. Darwin percebeu que a sobrevivência é fundamental (...)”
Richard Dawkins. O espectáculo da vida. 2009.
O homem português é em si – perdoem-me os biólogos- um ecossistema. Evolui. Aparece e desaparece na força condutora da seleção natural. Das espécies que o homem português produziu recordo aqui algumas, com as quais me cruzei na minha existência, e que desapareceram ou estão, perigosamente, em vias de extinção. Esta crónica transforma-se assim num curto ensaio sobre a saudade.
O senhor. Os indivíduos desta espécie tinham entre 40 e 80 anos e, ao contrário da norma atualmente vigente, queriam parecer sempre mais velhos do que efetivamente eram. Talvez essa fosse a causa da sua extinção. O senhor tinha a indumentária perfeita que lhe permitia cumprimentar o Presidente da República – não este! – sem qualquer embaraço estético. O chapéu de feltro de modelo clássico era o acessório central, tinham ainda fato e gravata e o sobretudo que só descansava em julho e agosto ... isto se não fossem a banhos para a Póvoa. Eram, naturalmente, conservadores.
O intelectual de esquerda. Ainda existem alguns espécimes, mas já bastante velhos, em reservas feitas para eles: os cafés históricos. A sua extinção deve-se muito ao facto de, atualmente, ter-se que dizer tudo de forma rápida e concisa. Eles, pelo contrário, eram lentos e com uma inata habilidade para darem seca. As causas fraturantes levaram à sua (anunciada) extinção. Estavam preparados para discutir Marx, Lenine, Trotsky e Mao, mas não a transexualidade.
O pessoal da esquina. Conjunto de jovens adultos que se costumavam reunir nas esquinas mais movimentadas da cidade a partir das 5 da tarde entre o início da Primavera e o final do Outono. Discutiam mexericos, bola e gajas e sabiam de tudo que se passava na cidade. Olha aquele está falido, olha aquela anda com aquele, foram os percursores das revistas cor de rosa na versão não escrita: o linguajar é inimputável. Afinados na arte do piropo e do olhar matador.
Os Élderes. Jovens de camisa branca de manga curta, calça de fazenda azul e gravata. Andavam sempre aos pares. Não se percebe bem qual o motivo porque desaparecerem já que outras espécies com o mesmo tipo de hábitos predatórios – as testemunhas de Jeová – sobreviveram. Eram originários da América e é possível que, com o aquecimento global, tenham perdido a capacidade migratória. Foram e não voltaram. Especula-se ainda sem grande certeza.
O vigarista do coração. O vigarista do coração é uma espécie muito própria do género mais alargado dos vigaristas ligando-se por taxonomia à família mais vasta - e pouco recomendável - dos criminosos. O Capitão Roby foi um dos seus mais perfeitos exemplares. Os vigaristas do coração encarnam normalmente a mentira que engendram. Inventam um passado para dar à mulher que amam (apesar de a enganarem) um presente. Eram verdadeiros na mentira que criavam, daí terem sido tão profundamente eficazes ao abordarem corações solitários. Quando, finalmente, era descoberta a trapaça, eram confrontados com a verdade e, aí, não a negavam. Nesse momento recuperavam a ética que (só por momentos, assim o julgavam) haviam perdido.
Adolescentes vigorosamente apaixonados. Casais heterossexuais muito comuns quando eu era adolescente. Profundamente ambientalistas procuravam sempre a folhagem cerrada para se encontrarem, os jardins da sua escola secundária ou os jardins públicos eram o seu habitat natural. Profundamente concentrados na sua missão despachavam com particular rapidez beijos e carícias no intervalo das aulas. Não eram, geralmente, grandes alunos. Pudera: quem depois de um festival de sensualidade quem está interessado nas leis da Física ou nos filósofos gregos? Os jardins minimalistas, uma maior liberdade de costumes e os telemóveis serão as causas mais prováveis do seu desaparecimento.
Publicado in O Comércio de Guimarães a 12 de fevereiro de 2020
Imagens: Fernando Pessoa (Wiki), Gramsci (www.frammentirivista.it), ign, Hélderes (missionary.lds.org), bertrand, Esplendor na relva Elia Kazan (1961)
Comentários