IRRITAÇÕES
"Não o
amo! Odeio-o! Vou sentada no carro enquanto ele conduz e me diz aos berros que
toda a gente está errada excepto ele, e odeio-o e abomino-o do fundo do
coração!”
Philip Roth Indignação. 2009.
Tem-se vulgarizado, com inusitada popularidade, a realização de “estudos
académicos” com temas bizarros e conclusões absolutamente inúteis para a
humanidade, mas que ganham um sólido protagonismo nos órgãos de comunicação
social, relegando para segundo plano outros estudos verdadeiramente
importantes.
“Os aspetos socioculturais
dos sapatos”, “A interação social das vacas”, a descoberta de que as pulgas que
vivem nos cães saltam mais alto do que as que vivem nos gatos, a brilhante
conclusão de que dizer palavrões alivia a dor ou de que uma massagem com o dedo
na região retal faz parar um surto incontrolável de soluços serão, certamente, grandiosas,
e quantas vezes dispendiosas, inutilidades. À exceção talvez da dos soluços -
se der efetivamente resultado - mas com todo o “perigo” associado ao método
clínico.
Tomei recentemente
conhecimento, através do interessantíssimo programa da Antena 1 Dias do Avesso,
de um outro estudo britânico que fixava nos 38 anos a idade biológica em que os
homens ficam velhos. É a partir dessa idade dizia o tal “estudo” que se manifesta
claramente os sintomas da velhice nos homens. Entre outros, o adormecer no
sofá, o dançar mal, o manter uma atenção constante ao termóstato que regula o aquecimento
da casa. Não sei se, levando a sério o trabalho destes “cientistas”, me alegre
ou entristeça. Adormeço no sofá e danço mal desde adolescente, o que quererá
dizer que sou velho desde aí? Ou, de forma mais benevolente, esses sintomas não
se me aplicam; essa asserção em conjugação com o facto de só regular o
termóstato da forma bimestral quando me chega a conta da EDPgás dar-me-á assim
alguma jovial tranquilidade.
Concordarei eventualmente que a idade trará desinibição bastante para
não nos importarmos que nos vejam adormecer no sofá. Continuo contudo a evitar
dançar, prefiro “abanar o capacete” em jeito de assentimento e não de performance. A desinibição é uma
conquista do tempo. Paciente e metódica, o que dá um gosto especial a quem a
conquista progressivamente como quem faz uma escalada. Quem é desinibido desde
muito novo passa, quando velho, diretamente para a irritabilidade desbocada. A
desinibição tem filtro, a irritabilidade é uma desinibição descontrolada.
Irrito-me pouco, mas mesmo assim mais do que o que desejaria. Por isso
fujo à perda de tempo e de recursos que a irritação exige. Não ouço o Camilo
Lourenço, tento ignorar as moscas, e espreito cada vez menos no Facebook para ler os arrebatamentos
éticos e estéticos dos profetas virtuais. No entanto há pequenas coisas que não
consigo evitar. Uma física e outra psicológica. A física e concreta tem a ver
com a mania que os pais têm em estacionar à vez o veículo, à porta da escola
secundária. Todos os dias, no trajeto para a minha própria escola, tenho que
aguardar pacientemente que uma fila enorme de carros deixe, um a um, a conta-gotas,
marmanjões de um metro e oitenta mesmo em cima da passadeira. Não vão eles
perderem-se ou constiparem-se no trajeto. Como procriei o suficiente sei quanto
custa andar com os filhos para trás e para diante, e que o veículo é uma boa
forma de suavizar a tarefa. O que ainda não entendo é a falta de empatia
generalizada que leva a que cada um se preocupe apenas consigo e não procure
minimizar o transtorno dos outros, deixando o filho sair, por exemplo, quando o
da frente sai. Mas não, cada um tem de vincar o seu transtorno particular, não
vão os outros habituarem-se a exemplares exercícios de cidadania. Enfim. Outra
coisa que me irrita, em reuniões, conversas, debates, é a mania que algumas
almas têm para discordarem, para acrescentarem, para precisarem, o que outros
disseram. Esta irritação de natureza psicológica deve-se ao facto de algumas
almas acharem que discordar é um sinal de inteligência e a concordância uma
manifestação de falta dela. Nada mais errado, a concordância é, muitas vezes, além
de humilde particularmente inteligente. Uma conjugação perfeita nas grandes
almas. Mas não, mesmo à beira da apoplexia do meu próprio entendimento, perco
(ainda) tempo ouvindo objeções sem sentido de quem e para quem a vida se resume
a ficar-se exarado em ata.
Publicado in O Comércio de Guimarães
Fotos do filme 12 angry man de Sidney Lumet (1957)
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