O mundial






" É gooooooooool na garganta florida/rouca exausta, gol no peito meu aberto/gol na minha rua nos terraços/nos bares nas bandeiras nos morteiros/ (...) na chuva de papeizinhos picados celebrando/por conta própria no ar: cada papel,/riso de dança distribuído/pelo país inteiro em festa de abraçar/e beijar e cantar(...)”
Carlos Drummond de Andrade. Jornal do Brasil. 1970.











E aí está mais um mundial de futebol, visitando-nos a cada quadriénio como um cometa celestial que não se engana no espaço, nem no tempo, nem no propósito. Agora é no Brasil, um país que resgatou, durante décadas, a sua (estranha) frustração interior com a alegria da arte do futebol na vitória dos seus craques.
Todas as guerras deveriam ser assim. Toda a necessidade de confronto, de afirmação e de domínio que caracterizam os povos, deveria ficar eternamente encarcerada num relvado de 110 metros por 75. Esta é uma guerra compreensível, entendível, desejável. Esta é a XX Guerra Mundial do Futebol, uma guerra da qual, felizmente, Portugal tem feito parte nas últimas edições (esta é a nossa sexta guerra: a quarta consecutiva!).
Umas caneladas, umas malandrices, um golo gritado do fundo da alma e o olhar perdido de um guarda-redes, são as munições inesgotáveis desta guerra. Um arsenal feito pela arte de meninos grandes que gastaram na rua, com uma bola, o seu precioso tempo de criança para o deleite dos adeptos.





Os campeonatos Europeus são interessantes, mas os Mundiais são outra coisa. Têm o Brasil e a Argentina e o exotismo de futebóis de outros continentes. Recordo com estranha facilidade os mundiais de futebol desde o ano de1978. Gravaram-se sem dificuldade na memória a vergonhosa derrota do Perú com a Argentina por 6-0 que afastou o Brasil da final, a justíssima e gloriosa vitória da Itália de Paolo Rossi por 3-2, no estádio do Sarriá em 1982, perante  a mais talentosa equipa canarinha, a mão do deus Maradona em 1986, o estádio de San Paolo na guerra Itália-Argentina de 1990, o falhanço de Baggio no penálti decisivo da final de 1994 nos Estados Unidos, o dramático Portugal-Inglaterra resolvido, uma vez mais, a penalties na vontade do guarda-redes Ricardo em 2006, a belíssima África do Sul e a arte de Ronaldo há quatro anos atrás. Ou o xeque do Kuwait que anulou um golo à França em 1982, ou o roubo de bola do camaronês Milla ao tonto guarda-redes Higuita da Colômbia em 1990, ou a cabeçada de Zidane em Materazzi em 2006, ou a defesa do avançado Suarez a um remate da equipa do Gana, o que garantiu ao Uruguai a continuidade da prova em 2010. O Mundial tem muito mais do que futebol, o que já seria suficiente. O Mundial tem o mundo todo em 32 equipas, e quem não tem lá a sua seleção de nascimento adopta uma, e sofre por ela e filia-se nos golos que falam o idioma do futebol.




O mundial é democrático. Toda a gente participa. Toda a gente quer ver e discute as jogadas. Mesmo quem está geralmente arredado destes fenómenos e da epifania diária de um jogo de futebol, dá também o seu contributo em termos da emoção. Estas guerras mundiais pintam cenas indescritíveis e bizarras. Distribuem choro e alegria de forma desproporcionada. Venha então o mundial e o sofrimento prazenteiro de acompanhar a nossa seleção. Venha então o desespero e o riso contidos nos pés de um Ronaldo.
A irracionalidade desta guerra faz bem aos espíritos mais contidos. Desembrulha-os, pelo menos de quatro em quatro anos.




Por falar em coisas bizarras a situação política no pós-eleições europeias em Portugal é de uma excentricidade surpreendente. Enquanto em França ou na Inglaterra o resultados foram seriamente assustadores, Portugal manteve-se “certinho”. O Marinho Pinto é mais uma fraqueza pimba do que um fenómeno. Espero eu. No entanto França ou Inglaterra mantiveram-se (estupidamente) serenos enquanto Portugal virou bagunça. Quem ganhou entrou numa luta fratricida, quem perdeu achou-se com coragem para enfrentar tudo e todos.
Prefiro, claramente, a irracionalidade da bola: Portugal, Portugal, Portugal!



Publicado in O Comércio de Guimarães (11.06.14)



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