Um espinho no dedo grande do pé direito
“Verbalizara
o louco desejo de ele próprio poder conservar-se jovem e de ser o retrato a
envelhecer (...) E, todavia, lá estava o retrato diante dele, com um laivo de
crueldade nos lábios.”
Oscar Wilde. O retrato de Dorian Gray. 1890.
Sinto saudades dos
meus pés. À medida que a minha barriga cresceu, ao longo de muitos anos, fui
perdendo a intimidade que com eles tinha. Dantes chegava-lhe facilmente com as
mãos, agora, até para apertar os cordões dos sapatos tenho de escolher a melhor
posição, tenho de dobrar o meu corpo, meticulosamente, como um acordeão, para
cumprir uma tarefa outrora simples e intuitiva.
Quando falo em
intimidade não falo obviamente de uma qualquer relação fetichista com os pés,
Deus me livre. Ainda para mais com os meus. Aliás de todas as taras possíveis e
imaginárias a dos pés é daquelas que mais me custa a entender, nem os pés têm
biologia para isso, sempre mal irrigados e por isso pouco sensíveis à carícia,
além daquela que alguns pés (poucos) têm com uma bola de futebol. Com tantas
partes bonitas e irrigadas que o corpo humano tem, apostar na sensualidade dos
pés é uma tolice incompreensível, é uma aposta arriscada no caroço da azeitona
esquecendo, deliberadamente, a polpa. Quando falo em intimidade falo em
camaradagem com os pés, falo em sentir a sua presença como parte integrante do
corpo na qual se repousam abstrações pontuais. Aceno-lhes apenas, diariamente,
como o faria com um vizinho a que desconheço o nome mas não devo iludir a sua
presença. Boa tarde, bom dia e apenas isso.
Ora a tal relaxamento
sentimental forçado, tal distância de olhar, leva a que eles, apesar de presos
ao meu corpo, comecem a ter uma vida própria independente da minha. Só isso
explica ter descoberto, recentemente, uma pequena farpa de madeira cravada no
meu dedo grande do pé direito e que pelo aspeto já lá deveria estar há algum
tempo. Não dei por nada, ele aguentou estoicamente a contrariedade sem me
incomodar o sistema nervoso. Magoado, talvez, por tantos anos de uma distância
convexa, aguentou sem se queixar, estoico. Até que numa aula de Pilates tive
que cravar perpendicularmente ao chão os meus dedos grandes no soalho e ele
gritou e eu, finalmente, gritei com ele e percebi que o pé, afinal, sofria. Ao
olhar, agora com olhos de ver, para o dedo grande do pé direito, percebi um
ponto negro profundo que não havia detetado quando, a muito custo, o lavo, ou
quando lhe corto a unha sempre contrafeito pela maçada que é cortá-la. A
relação higiénica com os meus pés é demasiado fria e distante para que
houvéssemos retomado antigas cumplicidades.
Ainda passei uns
dias, cobardemente, ignorando o assunto. Afinal só em determinada posição
aquele espinho me incomodava, não me atrapalhava o andar e isso era
suficientemente cómodo. O meu cérebro - que me conhece bem e sabia que eu era
menino para ignorar o pé - começou a apelar ao dramatismo. E se aquilo infeta?
E se aquilo gangrena? E se aquilo larga na circulação uma data de bactérias que
vão afetar outras partes do corpo? Resolvi então levar-me e levá-lo a um
enfermeiro que com um spray milagroso e uma perícia igualmente milagrosa
restituiu ao meu pé a dignidade perdida na maleita. Ficamos mais próximos desde
então e eu prometi cuidar dele, e do outro, por dias como este em que escrevo.
O tempo que me deu,
generoso, esta barriga e me afastou assim
dos meus pés, também plantou na minha cabeça palavras que tendem a desaparecer.
Mercurocromo é uma delas.
Quando, em
absoluta reconciliação com os meus pés fui à farmácia buscar o material para
cuidar deles pedi, intuitivamente, mercurocromo. A jovem farmacêutica que me
atendeu revirou, ligeiramente, os olhos como se atendesse naquela farmácia um
qualquer personagem de Charles Dickens que àquela hora pedisse petróleo para as
suas candeias domésticas. Mercurocromo acho que não temos e fez o gesto de
procurar mesmo não procurando. Expliquei-lhe para o que era e ela aconselhou-me
o Betadine, uma solução com iodo no lugar do maldito mercúrio que condenou,
sei-o agora, o medieval anti-séptico.
E por entre os
pingos grossos da chuva senti-me reconciliado com as partes do meu corpo mais
distantes. Uns pés que emigraram, há uns bons anos, do meu corpo e que retornaram,
por estes dias, à terra natal.
Publicado in O Comércio de Guimarães (15.10.14)
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