Memórias do segundo sexo
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico,
económico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o
conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e
o castrado que qualificam de feminino.”
Simone de Beauvoir. O segundo sexo. 1949.
Enquanto criança
sentia um enorme prazer em ser rapaz. Na lotaria da concepção havia-me saído a
condição de macho e isso era para mim profundamente reconfortante. O mundo estava
feito, pensava eu, para os homens. Desdenhava das brincadeiras das meninas, dos
floreados, das casinhas, e achava que a violência gratuita das brincadeiras com
os meus colegas rapazes – apesar de eu não estar intimamente talhado para a
coisa – é que era a vida. Talvez não errasse em achar isso. O mundo era
efetivamente mais de tiros, mais de cotoveladas nos colegas, mais de palavrões,
do que a placidez organizada do mundo feminino que me era possível vislumbrar.
No entanto rapidamente
me apercebi que aquele mundo masculino, omnipotente, que a televisão e a
algazarra alarve dos homens me transmitia era, efetivamente, aparente. Criado
no meio de mulheres foi quase intuitivo perceber que o domínio masculino contra
o qual Beauvoir e tantas outras se haviam alevantado, era já apenas um conceito
arqueológico, e não uma realidade, ao qual as mulheres davam um silencioso – ou
mesmo talvez desdenhoso - assentimento. Os senhores de gravata e chapéu
continuavam a ocupar os lugares da frente, mas o poder de decisão residia cada
vez mais nas mulheres, e isso iria naturalmente ter as suas consequências.
Mamma Roma. Pasolini. 1962.
A educação é, sem
dúvida, o principal barómetro do desenvolvimento, quer consideremos a sociedade
ou o indivíduo. Por isso não constitui para mim qualquer surpresa que em
Portugal, comparados por exemplo os últimos quatro anos, e para uma população
jovem que tem ligeiramente mais rapazes do que raparigas (51% para 49%), as
matrículas no ensino superior para esse período tenham sido claramente mais
femininas do que masculinas (56% para 44%). Ou seja, as raparigas vão
claramente na frente, o que para mim, que lido com os jovens nestas idades, não
constitui qualquer surpresa. E só não me alongo em mais comentários não vão os
meninos, coitados, ficarem deprimidos ao perceberem que a realidade não é um facto
mas uma construção. Eu sei que me vão dizer que os homens continuam a ocupar os
lugares-chave. Claro que sim, por comodidade das mulheres que não gostam de se
expor demasiado. Só em casos graves como o da Finlândia, um dos primeiros
países a ser devastado pela crise em 2008, com dívidas superiores a 1000% do
seu PIB e uma moeda que desvalorizou 85% face ao euro! Aí, perante tal
gravidade, entraram as mulheres e mandaram os homens novamente para a pesca,
com os espantosos resultados económicos e sociais que hoje se conhecem.
Chegaram ao cúmulo, vejam lá, de eleger uma primeira-ministra homossexual, não
fosse ela ter qualquer nefasta influência masculina, à cautela. Recuperaram o
país e foram-se novamente embora. Mas estão de olho.
A escolha de Sofia. Alan J.Pakula. 1982.
Impõem-se então
medidas. E urgentes! O aquecimento global não é um problema quando comparado
com este. Por mim sugiro já algumas simples medidas profiláticas.
Continuar a
ressonar e bem alto se possível. Não nos podemos deixar enredar naquela argumentação
de que incomoda. Nada de pensos e muito menos operações. Ressonar alto e
incomodar é um statement masculino,
ineludível. Cremes, nem pensar neles! É assim que vamos perdendo a nossa
credibilidade. Desodorizante e água de colónia, e com parcimónia. Banir os
programas dos comentadores de futebol. Nada afeta mais a nossa credibilidade do
que essas peixeiradas televisivas. Elas não percebem nada de futebol, é-lhes
inacessível essa bênção, mas os programas desportivos, em bom rigor, arrasam a magia que o futebol (ainda) tem e
dão-lhes a percepção da nossa infinita infantilidade. E há que pensar noutros.
E já.
E quando recuperarmos
finalmente, após denodado esforço, o nosso domínio, vamos, eu sei, perdê-lo
novamente. Assim - Há nos teus ombros
turbulentos/cintilações, pressentimentos.../Os nossos corpos descerão/ para
que abismos lamacentos? - na
rendição absoluta de um poema de David Mourão-Ferreira.
Mas nunca
desarmar, nunca, por mais desarmantes que elas sejam. E são-no.
Publicado in O Comércio de Guimarães. 04.03.2015.
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