O rescaldo
“A nossa ignorância permitia-nos viver, tal como quando estamos na
montanha e a corda está gasta e prestes a rebentar, mas nós não sabemos e
prosseguimos a escalada.”
Primo Levi. O sistema periódico. 1975.
A vida pode ser extremamente
aborrecida. Isso é um facto ineludível.
Tendo em conta que, em
princípio, só temos uma, será de uma extrema estupidez cobri-la de
aborrecimento, de tédio, de preocupação excessiva.
O segredo para o
aborrecimento da vida é levarmo-nos muito a sério. A receita para o
aborrecimento é termos a estranha pretensão de que os nossos pensamentos, as
nossas posições, os nossos atos, os nossos filhos até, estão todos revestidos
de uma superior verdade, a nossa verdade, e tudo aquilo que não se encaixa é
mau, é parvo e não presta.
O dinheiro, a posição
social, o nível cultural não são de forma nenhuma antídotos contra o
aborrecimento. Ser pobre é extremamente aborrecido, é um facto, mas ser rico
também o poderá ser se a nossa preocupação for exclusivamente a de continuar a
enriquecer, os impostos, os funcionários. Ser reconhecido socialmente arrasta a
preocupação de o ser de boa forma, ser apenas um rosto na multidão é
socialmente desolador. Ser uma besta e perceber que se é leva a um
aborrecimento de morte, não ser uma besta e julgar que todos os outros o são
leva a uma solidão angustiante.
As religiões animistas
tentaram dar um pouco de animação a esta coisa da vida. Segundo elas, quando
morrermos, encarnamos em animais e plantas e continuaremos a reencarnar de
forma perpétua. Aos espécimes vivos que como eu não nutrem particular interesse
por animais seria de uma suprema dor ver-me aprisionado dentro de um cão ou de
uma vaca leiteira. Por outro lado o crescimento exponencial dos chineses começa
a deixar-nos poucas opções para reincarnarmos nos animais que no período
anterior desdenhei. A suprema ironia seria ficarmos no limbo à espera de vagas
de animais, num angustiante desemprego de reincarnação de longa duração.
As religiões mais
especializadas deram-nos um Deus judaico tão maldisposto que torna a existência
um stresse contínuo, os muçulmanos sacaram a história das virgens para animar
os sacrifícios terrenos, e os cristãos – vá lá, tivemos sorte– levam-nos para a
contemplação como o prazer último da pós vida.
Nem as religiões mais
arcaicas nem as mais modernas nos deram mesmo assim, convenhamos, hipóteses
realmente animadoras para suportar o aborrecimento terreno.
A única e verdadeira arma
contra o aborrecimento é, sem dúvida, o humor. O problema é que nem todos temos
a sorte de o ter, ou pelo menos de o perceber. Transplantam-se rins, fígados,
corações e pâncreas, mesmo até cabelo, mas o humor é não transplantável. O que
é, diga-se, verdadeiramente trágico.
Eu que sou um dos dezassete
cavaquistas do país gostaria imenso de ouvir o presidente gracejar sobre o
bolo-rei, sobre o preso 44 ou sobre os 9 milhões 999 mil e 983 portugueses que
se abespinham sempre que ele fala. Seria porventura redentor: para mim, para
ele e para os outros dezasseis que comigo o apoiam.
O país está a ficar demasiado
sério e por isso aborrecido. Quando perdemos a capacidade de nos rir de nós
próprios ficamos sempre em estado de rescaldo. Ficamos pontualmente presos ao
rescaldo das chapadas ao miúdo da Figueira, nas reprimendas da troica, e agora
na desolação nacional das bastonadas da PSP na alma benfiquista.
Ou caminhamos para a frente
com humor ou ficamos, impotentes e culpados, no purgatório do rescaldo. E é
assim que nós estamos. Cheios de culpa por fumar, pelos feriados que tivemos
outrora, por Deus nos ter plantado aqui e D. Afonso e seus descendentes terem
delimitado com inteligência esta pequena assoalhada com vista para o mar em
dois dos seus quatro lados. Só alguém com extraordinário humor teria percebido,
como perceberam os nossos primeiros reis, que precisávamos mais de mar do que
terra.
A palavra rescaldo vai
começar, agora que o sol se afirma, novamente a ser usada. Estamos aqui junto
do comandante Ferreira, na serra da Lousã, no rescaldo do enorme incêndio que
lavrou na última semana, ou estamos junto de um popular no rescaldo do incêndio
da sua habitação.
O rescaldo é o caroço
intragável do tédio e uma porta escancarada para o aborrecimento. Gozemos então
impunemente, nos próximos meses, com o rescaldo. Das coisas, das pessoas, dos
pensamentos filosóficos, dos artigos que como este não levam (seguramente) a
lado nenhum.
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