A excursão


“Ou bem que aprendemos a caminhar juntos em paz e harmonia, ou bem que partimos à deriva para a nossa ruína, a nossa e a dos outros.”
João Paulo II. Discurso na Basílica de S.Francisco, em Assis. 1986.



Há quatro anos atrás estávamos, todos, parados na berma da estrada com o autocarro a fumegar, de capô aberto, sem gasolina e com as lancheiras praticamente vazias, sob um sol verdadeiramente abrasador. Berrávamos então, sem destino, uns com os outros pela falta de juízo do condutor José que nos gastou todo o combustível, estourou os pneus e o motor, e nos conduziu por estradas secundárias até que perdemos completamente o rumo, o propósito, a direção.
O José era doido e a culpa foi nossa em o ter escolhido para nos conduzir durante tanto tempo. Hoje o José encontra-se embrulhado num imenso rol de infrações por condução irresponsável. Mas, como já o conhecemos, o problema nunca é dele mas da linha contínua, do semáforo, do sinal vertical que puseram na estrada sem ele dar por ela. O José é assim, como muitos outros condutores. Por mais asneiras que faça a culpa é sempre dos outros que não tinham nada que estar na estrada. Ele é (ainda hoje) um artista, um acrobata do asfalto.






Mas a coisa acabou por tomar rumo. A custo é certo, mas tomou rumo. Decidimos que era a vez do Pedro conduzir e do Paulo servir de pendura. O Pedro nunca me entusiasmou, sou sincero. Não gosto de condutores que já conduzem muito antes de tirar a carta, mas aprendi, durante a viagem, a não ser tão cínico para com o Pedro. Ele chamou os mecânicos, pediu dinheiro para a gasolina e para os pneus, e obteve esse crédito, aguentou (ainda) firme na condução apesar da dificuldade do percurso e dos humores do Paulo. É claro que os mecânicos que nos repararam o motor e emprestaram dinheiro para as outras reparações puseram algumas condições que nos prejudicaram o conforto da viagem. Disseram-nos que não poderíamos ir por determinados sítios, que de tempos a tempos teríamos de parar para eles verificarem o estado do autocarro, se o condutor se absteve efetivamente do álcool, enfim, um conjunto de chatices que nos impeliu a irmos sossegadinhos na camioneta, partilhando a água e as sandes. A gente habituou-se a esse constrangimento ao ponto de, na parte final da viagem, cantarolarmos já algumas músicas, mas baixinho não fossem os mecânicos acharem que já estávamos, outra vez, a vandalizar alegremente a camioneta. Fiquei com respeito pelo Pedro. Muito mais do que alguma vez imaginei ter. Não vimos paisagens bonitas na viagem, mas nunca me senti em perigo de cair por uma ribanceira com os meus companheiros de viagem.






Terminada esta etapa, como é costume nas camionetas democráticas, votou-se para eleger o condutor. O Pedro foi novamente eleito, não com a folga (tributária da aflição) de há quatro anos atrás, mas foi eleito.
O António, ex-pendura de José, que havia atirado pela borda fora um camarada seu que se achava igualmente em condições de conduzir, não aceitou muito bem a derrota. Pior: não se achou sequer derrotado. O António, como o Pedro, diz que o rumo é para norte, no entanto com o apoio daqueles que acham que para sul é o caminho decidiu boicotar a recondução do Pedro, uma interpretação, disse, inteiramente constitucional. Pediu-se então ao contínuo Aníbal que desfizesse o nó. E o homem disse que deveria ser o Pedro a conduzir já que o António estava completamente bêbado. Esta apreciação de Aníbal é também, apesar da veemência, inteiramente constitucional. Outros contínuos, com poderes semelhantes a estes, fizeram a sua interpretação, sem que alguns passageiros, hoje tão sensíveis, arrepanhassem os cabelos. A vontade de Aníbal era que quem quer seguir para norte se entenda minimamente apesar dos caminhos alternativos que cada um pretende seguir. Já assim aconteceu com o António Manuel que, por seguir para norte, sempre contou com a conivência no rumo de Marcelo, apesar desse António não ter mais de metade dos passageiros com ele. Foi pelo pântano, e não pelo boicote, que ele desistiu então da condução.



Por mais que me esforce na parábola esta história não tem, na realidade, piada nenhuma. Sente-se angústia pura quando o António diz que vai furar os pneus à camioneta na primeira paragem. É caso então para gritarmos a plenos pulmões: Ó António está mais gente cá dentro, porra!


Publicado in O Comércio de Guimarães  28.10.15

Fotos dos filmes: Little Miss Sunshine (Uma família à beira de um ataque de nervos) (2006, Jonhatan Dayton) e, a última, de The italian job (Golpe em Itália) (1969, Peter Colinson). 

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