Espécies em vias de extinção?





“(…) mas a honra, como a consciência, não são quantidades constantes no geral das pessoas; são condições da alma tão variáveis como a matéria exposta às mudanças climatéricas.”
Camilo Castelo Branco. A brasileira de Prazins. 1882.





A cara do senhor ministro das Finanças Públicas nos últimos tempos preocupa-me mais do que os mercados, do que os bancos, do que os ratings ou as taxas de juro. Em particular quando o vemos nas reuniões de ministros em Bruxelas a sua expressão de menino perdido chega a ser aflitiva. Há qualquer coisa de “parti a jarra de estimação da minha mãe, ela está a entrar na sala, e eu vou apanhar uma tareia”, chega a haver pânico mesmo quando o ministro adota a expressão “trago três presuntos de Chaves na mala do carro, não tenho fatura, estou numa operação stop, o guarda tem cara de poucos amigos e está ali uma jornalista do Correio da Manhã”. A cara do senhor ministro é sempre uma cara de caso, uma cara atormentada. Até domesticamente assim acontece: nas conferências de imprensa e debates parlamentares há frequentemente aquela ausência espiritual típica de “este gajo está-me a fazer perguntas, mas eu estou tão aflito que já nada ouço além do meu intestino, quando é que eu saio daqui?!”. Não o vi na televisão assim tantas vezes, mas lembro-me da expressão confiante – com uma pontinha não desprezável de sapiente arrogância - quando liderava os doze apóstolos da economia. Mas a sua fácies mudou nos últimos tempos. E de que maneira.





Quem felizmente vai desaparecendo é o funcionário de atendimento público que só ali está para nos atormentar. Em vários serviços do Estado, cada vez mais rápidos e eficientes, vou notando, geralmente, delicadeza, preocupação e competência. Em recente e pessoal exemplo, a propósito de um abusivo despropósito da operadora Zon, encontrei nos serviços do tribunal arbitral de Guimarães um parceiro eficaz e justo. Apesar do arranque do processo ser online o pedido de ajuda não se perdeu na rede e uma funcionária acompanhou de forma minuciosa todo o processo, agindo e questionando de forma sempre atenta. Sustentaram-me a razão que sempre tive contra a agressividade cobarde de empresas sem qualquer dignidade comercial.
Foi preciso estar em Coimbra, há uns meses, para deparar ainda com os tiques do velho e rezingão funcionário. E em vários locais para tornar estatisticamente válida a amostra. Essa (também) minha cidade conserva ainda, com notável desvelo, um largo conjunto desses espécimes que assumem como função encontrarem problemas e não soluções. Como se encontrar a solução não fosse, quase sempre, mais simples e saudável do que criar um problema.



Mas o adepto do problema é resiliente e aparece onde menos se espera.
Eu sou do tempo (já cá faltava esta) em que os miúdos iam em grupo ver o Vitória ao municipal. Ou alguém lhes punha a mão no ombro para entrarem ou eram os próprios porteiros a fazê-lo. Quando ninguém me convidava para ir ao jogo eu fazia também isso. Nunca fui barrado nessa demanda e ia alimentado, jogo a jogo, o vício do Vitória. Mais tarde, com 13 ou 14 anos, e quando a nossa altura física já desaconselhava a que nos pusessem a mão no ombro, tornavámo-nos sócios de pleno direito, doentes efetivos de uma paixão sem explicação que nos acompanharia para sempre. Inevitável.
Em minha casa somos cinco. Eu e quatro notáveis sócias. Duas dessas sócias são fervorosas praticantes, as outras duas sendo indubitavelmente vitorianas não o praticam. De tempos a tempos utilizo os cartões das não praticantes, religiosamente pagos no início da época, para levar amigas das praticantes que mo solicitam. E é com gosto que as levo. Algumas delas tornaram-se entretanto sócias, outras não, mas sempre foram, no mínimo, mais umas jovens gargantas no nosso estádio, e nas quais ficou certamente o gosto pelo nosso Vitória.
No jogo contra o União aconteceu o que não sonhava que acontecesse. Ao levar connosco uma simpática jovem, vi-a na fila ao lado da minha a ser barrada com particular falta de educação, a tender para a humilhação gratuita. A coisa aqueceu, não por mim que me mantive (por aqueles instantes) sereno. Alguém amigo me deu (ali logo) um bilhete para se evitar aquele constrangimento já que alguns sócios partilharam comigo (só que de forma mais ruidosa) o desconforto por aquela cena. A mim não me tirava você o cartão, isso lhe garanto, barafustava alguém indignado. A coisa piorou ainda pois já questionavam se a minha filha mais nova, equipada à Vitória, pois saíra há minutos de um jogo de iniciados de voleibol, não faria ela também parte de uma tenebrosa conspiração para burlar o clube? A fotografia não estava atualizada diziam.
Ainda fiquei mais algum tempo na entrada – perdi dois golos - para ver se percebia aquilo. Para entender o motivo pelo qual aquela mulher e o homem que a supervisionava terem usado de tão mesquinha prepotência. Fui ingénuo no propósito e perdi finalmente, a sós com eles, a calma que a custo havia mantido.
No jogo contra o Setúbal fui para o meu lugar do costume. Não estava acompanhado desta vez pelas minhas filhas nem por qualquer amiga. Penso que dificilmente isso de futuro acontecerá. As minhas filhas que costumam acompanhar o Vitória também arranjaram, nessa noite, um programa mais convidativo, não sentiram certamente saudades da cena do jogo anterior. E o aspeto claramente desolador das bancadas do nosso estádio trouxe-me à memória o homem e a mulher das portas 8 e 9, e logo dirigi o meu pensamento para coisas mais filosóficas, já que o resultado do jogo também não ajudava: o que perdemos nós ao longo destes anos em bom-senso entre os porteiros que nos deixavam entrar quando éramos crianças e alguns espécimes de colete colorido que exercem hoje, com militante estupidez, o seu pequeno poder.



Publicado in O Comércio de Guimarães (17.02.16)

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