O estrangeiro


“A nacionalização das nossas massas só será bem sucedida quando, para além de todas as lutas positivas pela alma da nossa gente, os seus envenenadores internacionais forem exterminados.”
Adolf Hitler. Mein Kampf. 1925/6.






É raro encontrar um povo tão simpático para os estrangeiros quanto nós o somos. Se um estrangeiro nos interpela, meio perdido, aí estamos nós a indicar-lhe com velada e paciente dedicação o caminho. Somos assim.
Mesmo a palavra estrangeiro soa bem, soa agradavelmente. Em inglês a coisa é bem diferente: stranger soa mais a estranho do que a estrangeiro, é agressiva; foreigner, forasteiro, também não a é menos. Já os franceses têm o étranger que se amaneira aos seus maneirismos ... e que é suave quanta a nossa palavra: uma cumplicidade latina.



O que dizem os estrangeiros tem peso, é importante, é respeitável. Vejamos a azáfama dos nossos noticiários quando vão ler a imprensa internacional sobre nós, muito atentos, muito perscrutadores, como se a opinião que temos de nós próprios precisasse de uma caução, estrangeira é claro.
E a nossa postura individual tem muito dessa tonta necessidade de fiança. O meu amigo alemão disse ou uma amiga minha holandesa assegurou-me que encerram o nosso fascínio sobre a (avalizada julgamos nós) opinião dos estrangeiros. Tão certos estamos na confiança daquilo que nos dizem ... como numa enciclopédia ... e a britânica sempre foi a mais confiável.
No entanto a coisa pode azedar quando se atrevem a pisar-nos os calos. Sim, gostamos deles sem restrições com uma única condição: o de gostarem de nós. Se os finlandeses se atrevem a pôr em causa o auxílio económico a Portugal organizamo-nos em turba indignada e cavalgamos o YouTube com desprezo, lembrando-lhes, entre outras coisas, que a bandeira deles já foi nossa. Se se atrevem a chamar nojento ao nosso futebol, não descansamos sem o competente pedido de desculpas. Somos assim. Qualquer outro despautério indígena passaria desapercebido, dos estrangeiros é que não. Gostamos demasiado deles para os ignorar.





Numa Europa cada vez mais perdida em si mesma, perigosamente perdida na busca demente das diferenças, é refrescante a nossa fé. Parece tonta, mas não é. Tem algo de cristão, tem algo de amor adolescente. É pura.
A Grã-Bretanha optou agora por sair da União Europeia. Que tolice diríamos nós se no lugar deles estivéssemos. Em bom rigor eles (também) não o queriam. Só pretendiam assustar-nos e acabaram por se assustar a si mesmos. Tenho seguido os noticiários britânicos e eles, os estrangeiros ingleses, estão nitidamente constrangidos. O Boris queria chegar aos 49% e, azar, ficou com 52%. Foi traído agora na sua traição. O anormal do Farage rejubila com o crescimento da xenofobia que envergonhará certamente a maioria dos britânicos e até conseguiu o impensável que foi acordar Juncker do torpor imbecil de que se investiu enquanto presidente da Comissão Europeia quando lhe atirou “Porque é que [ainda] estão aqui?”. Se o Brexit tivesse acontecido connosco certamente encontraríamos uma norma constitucional para repetir o referendo. Eles não: são estrangeiros e sofrem estoicamente com a própria estupidez, sem tergiversar. Tenho pena deles e não lhes quero sequer mal. Da Inglaterra sempre tive boa música ... e os Monty Python.




O nosso impecável percurso no europeu de futebol terá assim ainda maior significado. Gostamos deles: das equipas que derrotámos. Uma após outra vão tombado aos nossos pés, e sobretudo pela nossa cabeça. Deixamos a fanfarronice de lado e passamos (finalmente) a ser matreiros. E isso é, na mudança de paradigma, uma tremenda evolução civilizacional.

Como somos simpáticos damos-lhes a ilusão de que nos poderiam ter ganho. E as equipas estrangeiras choram como se o resultado fosse um sortilégio e não um ato de inteligência, da nossa inteligência. Apesar de termos sido sempre a melhor equipa (em qualquer dos jogos que disputámos) damos-lhes a ilusão de que não a fomos. E eles ficam contentes na sua tristeza. Que os galeses mantenham viva a ilusão de todos os outros que nos defrontaram pois a final já nos livrou dos italianos, cuja profundidade do seu futebol teve a profundidade de um Rossellini. Os italianos, apesar de igualmente simpáticos, conheceriam de ginjeira a nossa manha. Eles inventaram-na. O destino abriu-nos assim as portas.


In O Comércio de Guimarães (05.07.16)     

Fonte das imagens (de cima para baixo): New York Times, Daily mail, Irish Times, The Himalaya Times

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