Hitchcock presents


“(...) Céline dividia os homens em duas categorias, os exibicionistas e os voyeurs, e é evidente que Hitchcock pertence à segunda categoria.”

François Truffaut. Le cinéma selon Hitchcock. 1966




Há memórias que ficam, vívidas, independente do tempo que as separa do presente. Outros factos - apesar de recentes - não chegam ao estatuto de uma memória.
Vários episódios do Hitchcock Presents que via religiosamente enquanto adolescente gravaram-se em mim de forma muito definida, inesquecível. Esse perdurar deve-se, certamente, à genialidade da realização mas, sobretudo, à perpetuação dos episódios nas conversas que tinha com os meus amigos. Passavam dias, ou mesmo meses, sobre um episódio e alguém se lembrava de uma cena, de um curto minuto que sustentava – sem dificuldade aparente - horas de conversa. Essa especulação funcionava mesmo sem a tecnologia das gravações para rever o episódio, sendo menos objetiva libertava a criatividade da nossa interpretação.
Só mais tarde percebi nas salas de cinema a genialidade de Hitchcock, a elegância plástica dos seus filmes, o labiríntico vício dos seus argumentos, as suas loiras mais ou menos domesticadas. E percebi ainda que Hitchock seria desdenhado como mero realizador mainstream de sucesso não fosse a sensibilidade de François Truffaut e a sua intrínseca honestidade artística sempre tão arredia dos meios intelectuais. O livro que cito é um exemplo dessa particular honestidade.




Recordo hoje um episódio em particular. Um marido ciumento prepara uma bomba-relógio, para fazer explodir a sua casa com a mulher e o suposto amante lá dentro. Depois de armar a bomba é assaltado por dois meliantes que desconhecendo o preparativo o amarram e amordaçam. Fica assim ele também, impotente, à mercê da sua empreitada. O extraordinário interesse do pequeno filme reside (sobretudo) nos minutos finais que passam em tempo real, e em que apenas se ouvem os pensamentos do homem, a sua angústia, a sua resignação e, posteriormente, o seu arrependimento. A câmara saltita entre a expressão aterrorizada do bombista e o relógio analógico em contagem decrescente. O tempo domina toda a cena e nos últimos segundos a câmara fixa-se apenas no relógio enorme com números imponentes. Um tic-tac-tic-tac avassalador.



Se há coisa que o tempo faz em mim (algumas vezes) é pôr-me na cena desse pequeno filme. Olhando o tempo cronológico com impotência. Fixando o relógio, aterrorizado com a certeza da sua cadência.
A opressão do tempo que se apressa inevitável não se vence, nunca se vence. Ignora-se quando muito com a tranquilidade dos galináceos que olimpicamente desconhecem os preparativos da cabidela.



Há no entanto, em muitos de nós, uma resistência interior e inconsciente ao tic-tac. Uma demência negacionista que pode, no limite, divertir.
A mim dá-me, muitas vezes, para levar o meu corpo aos limites na prática desportiva. Não, não gosto de praticar desporto sozinho. Eu preciso de uma bola, de competição, de uma equipa. O desporto coletivo tem a magia de um propósito partilhado, de uma responsabilidade dividida com outros. De férias do futebol encontro em agosto a subtileza do voleibol. Os serviços, os blocos, a luta contra os meus jovens sobrinhos e filha mais nova com todas as condições físicas, técnicas e biológicas para me humilharem mas, ainda, com aquela deliciosa ingenuidade de quando se é novo e fresco. Vou resistindo e ganhando (ainda) na companhia de outros maduros. Só que uma hora e meia de jogo, todos os primeiros dias daquele mês, de saltos e de amortis, deixaram indeléveis marcas no meu corpo. As costas começaram a doer a sério a treze de agosto. Na tranquila urgência do hospital de Esposende, um igualmente tranquilo e sapiente médico apalpa-me os dorsais enquistados pelo esforço pouco próprio. Eu ajudo, pressuroso, ao diagnóstico referindo a vergonha do meu peso, a ausência de pilates, a desadequação da sapatilha ao piso de relva irregular. Ele, divertido, escuta-me. E diz-me, acamaradado com a minha condição, que a minha idade, às tantas, também contribui para o facto que ali me prostra. Eu sei que ele tem razão e rio-me, apesar de entristecido. Olho o relógio que tique-taca com a raivosa vontade de o congelar. Saio então da urgência tal como entrei: de bicicleta, pois então. Altivo e desafiante apesar da curvatura dorida da espinha.


Publicado in O Comércio de Guimarães (12.10.16)

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