Isto não vai correr nada bem
“Quando as forças
da exclusão e do ódio passam a dominar a dinâmica política, o conflito
generalizado nunca poderá estar longe. O próximo ano será o combate das nossas
vidas para que isso não aconteça na Europa.”
Rui Tavares Público. 21.12.2016.
É bem possível que a
conjugação cósmica que permitiu a Portugal ganhar o europeu de futebol em
França, tenha desarranjado definitivamente o alinhamento astral. Acontece. Já
me aconteceu uma coisa semelhante, há uns anos, ao pendurar um candeeiro de
parede: pendurei-o é certo, mas destruí parte significativa da parede. Hoje não
acontece mais: ganhei a humildade necessária ao juízo.
O ano de 2016 não foi, em
termos concretos mau. No entanto o ano que agora findou teceu meticulosamente o
desastre consequente. Em 2016 não se deu a explosão química da mistura dos
reagentes, não, puseram-se apenas à mão os produtos químicos que, misturados,
concretizam a catástrofe. A saída de Inglaterra, mais atentados, a loucura
instalada nos governos da Europa de Leste, a loucura que se instala na Europa
Ocidental, e, a juntar a tudo isto, um catalisador precioso do outro lado do
Atlântico: o Donald!
Nada disto é Portugal, mas a
nossa irrelevância é tão (enervantemente) grande que um banco que estoure em
Itália, ou a prisão de ventre do primeiro-ministro chinês, nos afetam, sempre.
A CEE não era nada disto, até o
irreverente Vítor Rua dos GNR queria ver “Portugal na CEE” em 1981. Ainda me
lembro quando entramos, em 1986. Que deslumbramento entrar num clube privado de
gente aprumada, solidária, bem falante. Eram 10 e passaram a ser 12 connosco e
com Espanha. Entramos turvados pela emoção como um pé rapado entra num distinto
clube inglês. Em 1995 entraram mais três distintos países (Áustria, Finlândia e
Suécia).
Hoje aquela quietude
singular da Europa dos 15 perdeu-se. Adormecemos no processo e quando acordamos
já éramos 28 dentro do mesmo quarto. Foi-se a gravata e o clube, outrora
distinto, tornou-se um apartamento de adolescentes de férias em Ibiza. Uma
balda, e é bem possível que a nossa ancestral lentidão nos deixe para último e
tenhamos, afinal, que pagar os estragos de gente tatuada e com t-shirt de
mangas cavas em que os nossos aprumados parceiros subitamente se transformaram.
As sólidas democracias do centro
da Europa começam a titubear. Enredam-se em fantasmas vários e são incapazes de
ter uma visão de conjunto. Há uma meia dúzia de anos atrás começaram a irritar-se
connosco, com a Grécia, com Espanha, com a nossa bandalheira genética. Hoje já
perceberam que há coisas mais importantes – o que tem dado uma grande ajuda a
António Costa – que é muito mais difícil lidar com as tendências totalitárias,
com a inflexibilidade dos países mais a leste cauterizados por anos de
comunismo. E estão fartos, como os casais que não tendo crianças têm que gramar
com as correrias dos filhos alheios. Também por aqui somos irrelevantes, já não
somos sequer um problema.
A par disso a Europa mudou
muito, como o mundo. A internet e em particular as redes sociais criaram novos
heróis. As redes sociais são o reflexo do nossa luta constante para sair da
irrelevância. Já não vejo, como via, as pessoas a passearem o seu jornal nas
manhãs de sol do Toural. Já ninguém lê jornais! Tanto dinheiro a Europa dá para
os produtores de leite, para a produção de energia verde e não há ninguém que
se lembre de preservar os jornais, a sua qualidade, que minga, de dia para dia,
como as más camisolas depois de lavadas. A “verdade” hoje pode estar no que
qualquer palerma debita no facebook. E
a praga institucionalizou-se ainda mais quando o “pensamento” político do
futuro presidente dos EUA nos é dada em tweets.
No entanto a irrelevância
está altamente subestimada. Dever-se-ia estimar muito melhor a irrelevância
pessoal de cada um. Que interessa no fundo escarrapachar a viagem ou o
pensamento de forma pública? Porque o que nos constrói é (quase sempre)
irrelevante: o beijo que nos fez tremer de alto a baixo, um abraço forte num
amigo reencontrado, um redanho de porco quentinho e saboroso que pecaminosamente
se come, marcar um golo com o pé esquerdo quando se é destro, afogar o olhar
numa paisagem perfeita.
Eu vou encarar 2017 como
aquele assistente de bordo colombiano que se safou na queda do avião que levou
o nosso Caio Júnior. Vou colocar uma mala estre as pernas e enrolar-me à volta
dela. A não ser que ganhemos ao Benfica já este sábado e a conjugação cósmica
dos astros reganhe a harmonia perdida. Pode ser.
Publica in O Comércio de Guimarães (04.01.17)
Imagens: NASA (planeta Marte)
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