O outro e o aquele

“Havia de enchê-los de um amor infinito. Rodeá-los-ia de tanto amor, que toda a vida deles, entretecida dos cuidados e do espírito conciliador da mãe, perderia a sua razão de ser estando ela ausente.”


Boris Vian. O arranca corações. 1953.






Pertenço a uma geração que teve os primeiros filhos nos anos noventa. E chegada a nossa altura de os ter e educar víamos ainda com absurda nitidez dois mundos distintos de educação e acompanhamento da descendência. A diferença entre a estrutura familiar em que fomos criados, mais tradicional e assente na mãe, e o novo paradigma que se nos oferecia, mais democrático em termos de tarefas e mais próximo dos filhos, era abissal.
Estivemos (e estamos) nessa clareira entre o mundo antigo e um mundo novo que se impunha não só pela tomada de consciência do papel de cada um mas pela mudança do mundo, pela internet, pela legítima e cada vez maior afirmação das mulheres em termos profissionais, pelas mudanças na estrutura familiar que tudo isso implicava.

Olhando para trás, para a infância daqueles que começavam então a ser pais, ficava claro a intensa liberdade dos anos setenta que se restringia nos noventa. Tirando as horas passadas na escola – que não eram muitas! – tudo o resto era liberdade, era rua e horas para comer. Mesmo assim o pessoal atrasava-se nas horas e apanhava. Note-se que uma pessoa atrasar-se para chegar a casa, quando não tinha aulas de música, nem de inglês, nem de outra coisa qualquer, era obra. A gente atrasava-se para não fazer nada. E quando nos perguntavam: chegas a esta horas porquê? Nada saía pois mesmo a mentira precisa de um intento que lhe dê forma e credibilidade, e o nosso único propósito era não ter propósito nenhum.
O mundo das crianças de agora é intensamente operário. Terem tempo para dormir é uma sorte.



Pode parecer caricatura – e será - mas a grande preocupação dos pais nos anos setenta era se rasgávamos as calças. Tudo o resto era nada comparado com umas calças rasgadas, podíamos rachar a cabeça, podíamos ser vítimas de bullying que isso não interessava nada, quando comparado com a suprema infâmia de rasgar umas calças novas numa tentativa louca de fazer um corte de carrinho. Ahh! meu Deus porque não calhamos nós no tempo da moda das calças rasgadas. Bastava sair à rua para, passado pouco tempo, estarmos na moda. A harmonia do nosso mundo resumia-se à inviolabilidade da fazenda, ou até da bombazina se fossemos um pouco mais hype. A desarmonia do mundo assentava na biqueira do sapato de domingo gasta por uns proibitivos toques na bola antes da missa. O sapato de domingo mereceria, eventualmente, uma tese de doutoramento ou um museu. O sapato brilhante (como o horroroso sapato de verniz) era sistematicamente apertado e desconfortável. Quando se moldava definitivamente ao pé já não servia no comprimento. Talvez os americanos tivessem arrancado mais informações dos terroristas se em vez dos métodos tradicionais de tortura de Guantánamo tivessem obrigado os prisioneiros a usar uns sapatos de domingo, todos os dias mesmo não sendo domingo.

E os pais mudaram com as crianças. Hoje são como capatazes inflexíveis dos filhos, dos seus horários, os pais uber que circulam pelas ruas da cidade largando e pegando nos filhos como motoristas. Já poucas crianças conhecem as ruas da cidade sem ser através de um vidro de automóvel empoleirados na cadeirinha homologada pela Inspeção Geral de Viação.
E acompanham os filhos a todo o lado. Quando eu via os jogos de andebol dos meus amigos que jogavam nos juvenis as bancadas do pavilhão do Inatel só tinham os amigos daqueles que jogavam e talvez um pai, deslocado e taciturno. Hoje é exatamente o contrário. Qualquer jogo só tem pais e isso devia ser proibido, faz mal às crianças, faz mal aos pais, faz mal ao treinador e, sobretudo, faz mal ao árbitro de ocasião.



Eu acho que – e isto é já uma nova pista para outro doutoramento – o problema está na concepção. Apesar de no tempo em que fomos concebidos os métodos concepcionais já existirem (com doses cavalares de hormonas é certo) ainda existia igualmente a inércia do aconteceu. Estás grávida mulher? Outro? Valha-me Deus. Nós éramos assim o “outro?”. Agora não, planeia-se a vinda do rebento. Ora senhor doutor dava-me imenso jeito ter a menina no dia 4 de julho, pelas 15h00 o mais tardar 15h30min. As crianças de agora são “aquele!”: o que se planeou, o desejado.
E o abismo existente entre o “outro” e o “aquele” faz hoje toda a diferença.


Publicado in O Comércio de Guimarães (01.02.2017)

Imagens do filme "Os quatrocentos golpes" de François Truffaut (1959)


Comentários

Unknown disse…
Adorei o artigo! Eu fui das que teve uma infância serena,feliz, com muitas férias e ainda a desejar mais.

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