Fintar com a alma
“Vou sem
desassossego ao que vier/ Como o jogador de cartas/ Que por tanto partir e
bater/ Já conhece de cor o acaso.”
João Almeida. Hotel Zurique. 2017.
Como na encantadora música
nós, os vitorianos, estamos sempre dispostos a amar por dois. Amamos por nós
próprios e pelo clube. Mesmo que o Vitória nos arrelie nós continuamos ali,
fiéis como sempre fomos. Só assim se compreende a resiliência desta paixão
clubística. Se o Porto, ou o Benfica, ou o Sporting passassem pelo que nós
passamos bater-se-iam certamente com o Cova da Piedade no número de adeptos e
no fervor clubístico. Nós não queremos – qual emplastro - meter a cabecinha só
para aparecer, só para fazer parte daquilo que ganha. Preferimos o ser ao
parecer. Os outros fintam com os pés, nós com a alma. E a coisa transmite-se na
genética como as coisas boas.
A percentagem de jovens
vitorianos nascidos em Guimarães é, atualmente, avassaladora. E isso é um
trabalho de educação metódica e notável que várias gerações diligentemente
efetuaram e que perdura no tempo. Ou seja, em Guimarães, é natural
comportarmo-nos como europeus que somos e, assim, as pessoas de uma terra são
pelo clube que representa a sua origem como, aliás, acontece no mundo
civilizado.
Apoiar o Vitória é tão
importante como saber quem é a D. Teresa ou a Mumadona, é educação e cultura. O
facto de não termos sucumbido ao facilitismo pimba fez com que o Vitória se
implantasse granítico nos jovens. Pois o futebol não se resume ao prazer de
ganhar, mas sobretudo à honra em pertencer. E perceber isso é perceber a
essência daquilo que torna o futebol tão apaixonante. O que não é nada do que
se passa hoje em Portugal, onde continuamos submersos por um mediático e
enjoativo ódio a três que, diga-se, não tem jeito nenhum!
A nossa paixão forjou-se mais
na densidade do sofrimento e da injustiça do que na inconsequência festiva da
celebração. Por isso nunca precisámos de títulos para sermos indefectíveis do
clube. Por isso sobrevivemos estoicamente a impensáveis derrocadas, chateados, tristes,
mas irmanados em algo maior. Aguentamos porque o que é nosso é nosso. E,
sabemos, a paixão pressupõe sofrimento, no futebol ou na vida.
O Vitória está para além do
imediato, do descritível, é mais poesia que prosa. Ser Vitória não se forjou na
cobardia de adoptar um amor ganhador. O amor não é aritmética, quem assim pensa
ou não percebe nada de matemática ou não percebe nada de amor. O Vitória é o
mito de Sísifo: a pedra que carregamos com
esforço até ao cume para a ver rolar novamente para baixo. E recomeçar sempre
com uma convicção que se rejuvenesce no esforço coletivo. Ser Vitória é uma
tarefa que por tão metódica se transformou em vício sem solução.
E o nosso estádio sempre foi
um estádio com gente. Gente que aplaude, gente que apupa, mas gente, sempre
gente a fazer de conta, naquela hora e meia, que o futebol é a coisa mais
importante do mundo, mesmo não o sendo. Ver o nosso estádio assim pintado de pessoas
com a precisão, a cor e o volume de um quadro pontilhista dá o prazer de uma
pertença, de sentir uma juventude que não se cansa de o ser. Uma juventude que
percebeu a paixão dos pais e dos amigos, o orgulho nas origens, e que dá uma
força homérica para rolarmos em conjunto a pedra até ao cimo e, se calhar, um
dia, até ao equilíbrio que a mitologia grega não previu. Enquanto isso o pai
segura o miudito pelas pernas e ele canta Ó
Vitória e olha o pai, de soslaio, gratificado por aquela comunhão
particular.
Estabilidade é o que é
preciso ... para a pedra e para o clube. Mais do que títulos precisamos de
saber que a paixão pode continuar. É isso o que eu espero dos dirigentes e do
bom trabalho que têm feito em prol de uma causa e de um amor comum.
Uma devoção assim tão
inevitável não precisa de trocas. Ganhar é bom e gratificante mas episódico,
pois este é um amor que não tem outro propósito que não o de existir, como todos
os grandes amores. Vamos lá então para o Jamor sem desassossego como no poema.
Nós: os que conhecem já de cor o acaso.
Fotografias (de cima para baixo) de Miguel Oliveira, Ricardo Rodrigues e Ricardo Leite para a exposição O DIA V (2014)
Publicado in O Comércio de Guimarães (24.05.17)
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