A fronteira
“O adjectivo?
Que horror/quando não é incisivo,/quando atira para o vago/ o pobre substantivo
(...)”
Alexandre O’Neill. O
adjectivo in Abandono Vigiado. 1960.
Há adjetivos que não aderem a
nós, que resvalam em nós como ovos numa frigideira de teflon. Escorregam, não
colam, não perturbam. Velho é um desses casos. Velho é um adjetivo que gastamos
nos outros mas nunca em nós. A fronteira desse mundo é inatingível, está sempre
à nossa frente e nunca verdadeiramente a cruzámos interiormente. No entanto o
corpo vai acendendo luzinhas, como os automóveis dos anos setenta.
Há uma estúpida e
preconceituosa máxima que tenho na minha vida – e que não tem nenhuma pontinha
da metafísica dos chocolates – e que é a seguinte: não posso ficar gordo e
careca ao mesmo tempo. Quando o meu corpo começou a acender algumas luzinhas eu
agarrei-me a isso, confiante na genética paterna e materna que me assegurariam
um brilhante futuro ao nível capilar.
No entanto (não sei se é dos
chineses ou do c...) o meu cabelo começou a dar sinais de me querer tornar o
primeiro careca da família. Mesmo exagerando esse destino – mais por
esquizofrenia do que por constatação - este é um título que eu dispensaria na
linhagem dos Costas e dos Poeiras Lobo.
Bem me avisou o meu amigo
Talecas há uns quinze anos atrás: Vita
não podemos chegar aos três dígitos! Se eu o tivesse verdadeiramente ouvido
não me preocuparia (tanto) hoje.
Quando era magro pesava 80
kg. Sempre me achei um homem de substância e o peso é o reflexo prático da
substância. Não entendo a magreza masculina, por isso o meu magro sempre foi
uma espécie de meio-gordo. São os ossos, digo-o (com razão) muitas vezes.
No entanto dos 80 aos 100 é
um tirinho. É como nos carros quando estão acelerados e têm motor para isso,
como eu o tenho. Passei então a fronteira para aí há uma dúzia de anos e nunca
mais saí dos três dígitos. Tenho estado numa espécie de cruise control da massa corporal, mas para cima.
Por agora tenho-lhe dado
forte no treino, fechado a boca aos pecados gastronómicos e aberto a goela de
camelo à água. Acho que já estou nos 100. Talvez marque uns esperançosos 99,90 tal
como o preço de uns sapatos. Vou tentar voltar à tranquilidade abrangente dos
dois dígitos. Vamos lá a ver se me disciplino e se retorno a fronteira que
nunca deveria ter cruzado.
Convém então falar de comida
em vez de a comer. Sempre alivia.
A gastronomia moderna
começa-me verdadeiramente a chatear. Os chefs
irritam-me na mesma proporção que os cozinheiros me encantam cada vez mais. Não
quero histórias sobre infusões e reduções em pratos tradicionais, porque se há
de confitar o leitão se gerações e gerações o aprumaram, pacientes, no forno?
Não há espuma que disfarce uma má carne nem risotto que suplante um arroz de
tomate a sair pelo prato fora, literalmente.
Há dias fui com a minha
mulher disfrutar um jantar a dois num restaurante da cidade. O menino que à
mesa nos serviu explicava tudo, mesmo tudo, pormenorizadamente. Depois de ele
se ir embora perguntava à Ana sobre o que estávamos a falar. Dava para esquecer
tal o tempo e pormenor que connosco gastava. E a conversa continuava até ao
próximo salmo a propósito de um novo prato. E novo esquecimento dialético. Mas
apesar do esforço do menino a minha memória nada gravou. No entanto nessa mesma
memória está gravado o sabor amariscado do salmonete grelhado que comi em
Lagoa, uma surpreendente feijoada de búzios em Porto Covo, a jovem vitela
assada lentamente na Vila da Feira em casa de um amigo, o redenho de porco que
nunca mais comerei (!), o rabo de boi com grão de bico no Vila Lisa, uma
navalheira acabada de cozer.
A nossa memória é
verdadeiramente seletiva. É isso que falta aos computadores e, provavelmente,
sempre faltará.
Ora vamos lá então descer
para os 99!
Notas finais: a exposição O Verde a Preto e Branco, da Muralha, a
decorrer já no Hotel da Penha, abre a 27 de julho – o seu tempo 2 - no
Guimarãeshopping. Imperdível. A nova edição das Poesias Completas de Alexandre
O’Neill pela Assírio & Alvim foi editada. Vem complementar – nunca
substituir - a minha edição gasta da Casa da Moeda. Desta vez pela mão de Maria
Antónia Oliveira. Igualmente imperdível.
Publicado in O Comércio de Guimarães (20.07.2017)
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