Os indignados
“Contemplou-o
na esperança de ver sair as primeiras gotas de urina, mas parecia que quanto
mais o mirava, mais este se recusava a mijar.”
Carlos Guimarães. As borboletas voam sozinhas. 2016.
Se há coisa que cresce com a
idade – além dos pelos no nariz – é a indignação. No fundo a indignação não é
um sentimento é uma glândula. Uma coisa pequenina como uma próstata. A próstata
quando atingimos a idade adulta tem apenas quinze gramas e com o tempo duplica
de massa – sem que eu perceba porquê - e às vezes mais ... lê-se num site médico que pode chegar aos 120
gramas!
Ao contrário da próstata a
indignação não é contudo operável. E é pena pois pode-se morrer das duas: da
próstata, mas sobretudo de indignação.
Eu operava a minha indignação
às mãos sábias de um bom cirurgião. O médico/escritor do qual faço a citação
servir-me-ia perfeitamente. As palavras também não o atrapalham – de todo -
apesar do fraco gosto para títulos.
E removia a minha
indignação, caso pudesse, pois ela tem tendência a crescer quando conduzo.
Pertenço ao grupo daqueles que acham que toda a gente que está na estrada só lá
está para me atrapalhar. É que a indignação quando atinge o estado de
“indignação crónica” tira toda a piada a quem já a teve, caso a tenha tido, e
torna aqueles que sempre foram chatos em seres absolutamente insuportáveis.
O indignado é o terrorista
da descontração. É aquele que dá cabo de um jantar de amigos pois fica
indignado por o arroz não ser carolino, ou outra coisa qualquer. É aquele que
não consegue ver um concerto sem embirrar com a cerveja do festival. É aquele
que acha que qualquer herói tem sempre algo que se diga, aquilo é tudo imprensa
... no mínimo é larilas!
E não há indignados com
pinta. O último de jeito – e quiçá o único – era o Vasco Pulido Valente. Há
quanto tempo não o leio, não leio as suas certeiras indignações, e meu Deus
como isso me deixa indignado.
Os pais indignam-se com os
seus filhos. Esta é uma indignação costumeira. Como pudestes fazer-me isso
Tozé? O precioso “fazer-me” diz tudo. O Tozé não fez simplesmente. Fez aquilo
ao pai ou à mãe. E o Tozé que não é bom em retórica e não é suficientemente
inteligente para perceber que os seus pais já foram tozés imagina, culpado, que
aquelas pessoas que tem à sua frente vieram impecavelmente assépticos do Música
no Coração para serem seus pais. Que vergonha Joana.
Muita da indignação é hoje o
pasto perfeito das redes sociais. Prados imaculados como os do tal filme: num é
relva, no outro indignação.
A indignação é a marca das
redes sociais, além dos copos com gin tónico e de pessoas a dizer “finalmente
férias”. (Quando recomeçar a trabalhar vou por um post “yess, finalmente a trabalhar”, a ver o que acontece). A bola
– à falta de melhor - é o que merece maior indignação. E é ver os benfiquistas,
portistas e sportinguistas, arrancarem os cabelos indignados com as
arbitragens, como quem diz parece impossível o teu árbitro roubar melhor do que
o meu. E agora que por cá as coisas não estão nada bem – além da venerável Bancada
Sul – florescem os indignados. A tristeza é para mim um sentimento imóvel e por
isso tenho alguma inércia em indignar-me com a minha própria equipa, com o meu
clube. No entanto aprecio ver muita gente que teria dificuldade em governar os
seus próprios sapatos, achar que não senhor que rua com os incompetentes. E a
política tem também o seu espaço nobre no reino da indignação. E é ver os de direita
indignadíssimos com as mortes nos incêndios, e os de esquerda, quais beatas,
indignados com a indignação dos outros, como quem diz ouça lá essa indignação é
minha, ou era. A minha indignação em política teve e tem um nome sobre qualquer
outro: José Sócrates. Mas com o tempo começo a perdê-la. E isso é bom para a
minha saúde. Bem vistas as coisas o homem montou um esquema à imagem daquilo
que melhor se faz lá fora (o que é de saudar pelo engenho do engenheiro) e
aparece sempre imaculado a responder a perguntas (previamente combinadas) com
aquele ar indignado e olhando fixamente para as câmaras dispara: estou
indignado!
A leitura desta crónica deve
ser acompanhada pela música Dancing in
the Moonlight: um ótimo medicamento para a indignação (não cura, mas
alivia!). Recomendo a versão original dos efémeros King Harvest ou, quando
muito, a versão reggae dos Aswad, ou
mesmo o versão pop dos Toploader apesar do vídeo pastoso. As outras não
prestam. É só ir ao YouTube e procurar e pôr a tocar e tornar a ler. Eu sei que
é pedir demais mas, pelas alminhas, não fiquem indignados com a proposta.
Pronto, está bem, só a música.
Publicado in O Comércio de Guimarães (29.08.17)
Imagens: mike dawson/theweeklyhall.com/tucker stone/philip roth
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