Eu era gajo

“Esse estilo é escolha tua, ou paraste num ano qualquer e o resto da malta deixou-te lá sozinho?”
Marlon James. Breve história de sete assassinatos. 2014.



Começar uma frase por eu era gajo nunca foi bom sinal. Já não é muito comum, já o foi mais. No meu tempo (adoro também este início de frase) era mais usada. Bastava três ou quatro rapazes mais entediados para alguém proferir eu era gajo e, assim, quebrar a monotonia. E isso acicatava os outros, e poderia haver até algum dos rapazes que, enciumado pela falta momentânea de protagonismo, era gajo para uma coisa bem pior e mais arriscada do que a primeira.
Na realidade é-se (verdadeiramente) gajo quando se é jovem. O ser-se gajo precisa de doses razoáveis de testosterona que abundam nos machos jovens. Ser-se gajo para fazer uma asneirada tem a virtude de uma escolha e retira o tédio das coisas que se esperam como normais.
Não ser gajo para fazer – ocasionalmente – uma asneirada é um desperdício de hormonas.



Eu era gajo pressupõe assim e sempre uma temeridade: eu era gajo para partir isto tudo, eu era gajo para beber esta garrafa de golada, eu era gajo para pegar naquele toiro, eu era gajo para trocar aqueles sinais de trânsito, eu era gajo para acelerar este carro até ao limite, até ao ponto em que ele vai parecer um avião no meio da tempestade.
Essa temeridade implica sempre um grau razoável de fanfarronice e alguma idiotia. Fanfarronice e idiotia são os ingredientes mágicos que funcionam na perfeição para se ser gajo, o que no sexo masculino não é assim tão difícil de ter e de conjugar.



Sendo a gajice um comportamento totalmente analógico será que os miúdos de hoje ainda conseguem ser gajos? Na verdade, na versão atual, o rapaz já tem dificuldades em ser gajo. Com o nariz sempre enfiado no telemóvel não está fácil ser gajo. Colocar a fotografia do rabo no Instagram ou passar ao nível 27 do bubble chicken não é propriamente de gajo. Apesar de idiota esses comportamentos nada têm de fanfarrão. Não se é gajo assim, é-se apenas idiota e um gajo tem de ser, igualmente, fanfarrão.
E as raparigas? A versão feminina é, sem dúvida, a mais perigosa. Quando alguma mulher diz eu era gaja para... cuidado, é sair da frente! As mulheres são o oposto dos jovens de hoje: são fanfarronas sem serem idiotas. E isso torna o ser gaja um perigo de proporções bíblicas. Dá à asneira um lado sério e intencional o que é (geralmente) um desastre.
Nem uma nem outra versão atingem contudo a pureza higiénica de se ser gajo.



Ser-se gajo é importante. Quem nunca foi gajo não sabe bem onde se situa a normalidade. O gajos são, ironicamente, os que melhor sabem de normalidade pois estão constantemente a sabotá-la. Quem nunca foi gajo passa com muita facilidade - e com visível prejuízo da comunidade - para o estado de ser indivíduo. E os indivíduos, esses sim, são verdadeiramente perniciosos. Ó Tavares eu era indivíduo para criar aqui um fundo com estes depósitos bancários e apostar nos mercados emergentes, vamos, eu e você, ganhar um dinheirão. Eu sou indivíduo para vos dizer que cada cidadão terá um fontanário com o seu nome.
Aquele que começa uma frase por eu sou indivíduo é um perigo público, pois ao contrário do gajo não dá para perceber a verdadeira intenção. O gajo acaba por se estatelar, o indivíduo providencia uma cautela (a sua). O gajo magoa-se porque tentou atingir o impossível, o indivíduo pisga-se depois de magoar os outros. O gajo não guarda rancor, o indivíduo não guarda remorso. O gajo é juventude, o indivíduo é velhaco. O gajo vive, o indivíduo sobrevive.



Tenho por vezes, devo confessar, saudades de ser gajo.
Uma boa idiotice dá muito que fazer à imaginação. Treina-a para outras coisas.
A pura fanfarronice é presente em estado puro: não há passado que a condicione nem futuro que a domestique. A fanfarronice liberta.
É talvez possível que se tivéssemos mais gajos e menos indivíduos as coisas fossem melhores e funcionassem melhor. Ou, pelo menos, fossem infinitamente mais divertidas.



Publicado in O Comércio de Guimarães (27.09.17)
Fotos de gajos: Tom Waits, Chet baker por Bruce Webber, Jim Morrison por Jim Marshall, Frank Zappa por John Olson e Art Pepper por William Claxton.

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