O feitiço do tempo
“Quando dizem
que «a idade está na cabeça», meu fígado e minha coluna dão risadinha
sarcástica. Mulheres têm a idade que merecem, homens serão sempre crianças.”
Rita Lee. Rita Lee – uma autobiografia. 2017.
Portugal é assim mesmo. Ora é
o maior país do mundo ora, pouco tempo depois, é o mais miserável. Há uma
esquizofrenia bipolar nesta nossa longa existência, já nos habituamos a isso.
Os espanhóis, os franceses, os alemães, os americanos, chegam a ser arrogantes
por se terem tão em conta. Nós nunca chegamos a esse patamar pois o nosso
estado de euforia coletiva dura sempre muito pouco, há sempre uma realidade
futura que se ri da presente, que dá cabo dela, que a amesquinha. O tempo para
nós não é inclinado – para cima ou para baixo – é curva e contracurva como uma
montanha russa. Andamos para cima e para baixo, eternamente.
Atualmente o tempo é de
depressão. E não poderia ser de outra forma. A catástrofe dos incêndios de 15
de outubro a seguir à catástrofe dos incêndios em Pedrógão não nos deram outra
saída. Só se tivéssemos uma insensibilidade de pedra, e isso não temos nem
nunca o tivemos.
Há uma comédia de que gosto
particularmente: O Feitiço do Tempo/Groundhog Day (1993). Nesse filme a
personagem principal (Phil interpretado pelo excelso Bill Murray) acorda todos
os dias no mesmo dia. No entanto o personagem começa a tentar viver com essa
realidade arrepiante. Acorda à mesma hora do mesmo dia e passa sempre pelos
mesmos acontecimentos. Com a sucessão dos dias Phil começa a tirar partido
dessa realidade: segura um martelo que vai a cair, avisa as pessoas do que lhes
poderá/irá acontecer, aprende a tocar piano, e, inclusivamente, consegue
conquistar a repórter de TV pela qual se enamora, por tentativa e erro numa
sucessão de encontros. Se uma determinada frase é inadequada para a sedução que
ele empreende, muda-a no “dia seguinte” para algo que a impressione
positivamente. E acaba por conquistá-la ao fim de muitas tentativas que no
fundo, e para ela, é apenas uma: a primeira.
Portugal acordou a 15 de
outubro como se acordasse no mesmo dia de junho em Pedrógão Grande. Só que não
aprendeu nada e os mesmos erros foram cometidos e nalguns casos até ampliados.
O facto de em 4 meses não se ter aprendido nada é absolutamente indesculpável.
O governo não é burro – já percebemos – mas tentou na ressaca da renovada
tragédia fazer de nós burros. E isso não colou pois nós não o somos
efetivamente.
Houve mesmo quem tentasse
culpar o mensageiro pelo conteúdo mensagem. Muito se escreveu sobre a sobreexposição
da dor que os órgãos de comunicação, alegadamente para alguns, fizeram. Em
Pedrógão, por exemplo, discutiu-se se era ético enquadrar um cadáver ao fundo,
em vez de se estar preocupado em perceber o que realmente interessava: a
extraordinária e inelutável dimensão da tragédia.
Eu vi noticiários mais do
que o costume e li sobre a tragédia também em demasia. E não me cansei de
perceber tanta tristeza, porque perceber a tristeza dos outros é o mínimo que
se espera de quem a tragédia não manchou o presente pessoal e familiar. É
possível então dizer-se que é demais ter acontecido, e nunca será demais
mostrar o que aconteceu. A responsabilidade cívica pertence a todos.
E os desabafos emotivos daqueles
que tudo perderam ensinam, certamente, mais do que os debates parlamentares ou
frases bonitas em outdors espalhados
pela cidade. Quanto mais não seja pela empatia de se perceber que poderíamos
ser nós, um de nós, a ter de partir novamente do zero depois de uma vida de
luta e trabalho e privações para ter um teto ao qual chamávamos nosso.
O tempo deixa marcas
irritantes no corpo e no país. Esta velhice de nove séculos renova-se no
entanto a cada dia. E a idade não é desculpa para não aprender, pelo contrário:
quanto mais somos em história e unidade melhores deveremos ser enquanto
comunidade. Não podemos continuar impávidos a olhar para as varizes. Somos
mais, muito mais, do que isso. E por amor de Deus: não acordemos novamente a 15
de outubro de 2017! Nunca mais.
Publicado in O Comércio de Guimarães (25.10.17)
Imagens (de cima para baixo): Rui Duarte da Silva (Expresso), Lucília Monteiro (Expresso), Lucília Monteiro (Expresso) e Nuno Botelho (Expresso)
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