Exame de condução

“(...) Se o engenheiro sempre não era engenheiro/ E a rapariga ficou como uma engenhoca nos braços (...)”
Alexandre O’Neill.No Reino da Dinamarca.1958.

Há um conjunto de assuntos tabu de que as pessoas não falam facilmente com outros. Dívidas pessoais, sexo e exames de condução estão entre esses assuntos. Decidi hoje sair do armário quanto ao último dos itens.



Apesar de não haver estudos da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre o assunto, suponho ser bastante alta a percentagem de quem chumbou no código ou na condução, ou pura e simplesmente comprou a carta. Eu estou nesse grupo se bem que, penso, no subgrupo mais aceitável: o dos que chumbaram no exame de condução. Está dito. Que refrescante alívio!




Tirar a carta em Coimbra é como tirar o curso numa prestigiada universidade. É distintivo. Uma cidade de altos e baixos exige muito mais do que Aveiro, Braga, Castelo Branco. No entanto cheguei ao meu primeiro exame com alguma confiança e tinha, segundo o meu instrutor, motivos para isso. Calhou-me um engenheiro tipo pop starmas simpático, de óculos escuros e gravatinha. E a coisa estava-me a correr bem, parava nos stops, metia as mudanças com ligeireza, conferia a parafernália de retrovisores com elegância. Toca então a subir a Av. dos Combatentes, estou com sorte pois o amarelo do último semáforo calha-me a mim. Não tenho ninguém à frente: perfeito. Mas, inexplicavelmente, deu-me uma de artista de circo, Pepito vai tentar dar um mortal na corda, silêncio por favor, e lembrei-me, para mal dos meus pecados, de ajeitar o banco do condutor quando a inclinação da rua, vivamente, o desaconselhava. Resultado: fiquei como um astronauta a sair da atmosfera terrestre, projetado na inércia para o fundo do veículo. Veio o verde e eu ainda lá estava, quase na mala a tentar recolocar o assento e esticando os dedos dos pés para não arruinar, como arruinei, o ponto de embraiagem. Vermelho, verde novamente e eu lá arranquei, mas o mal estava feito. Aceitei o chumbo com resignação culpada. Foi justo. Da segunda não. Sim foram duas: duplo alívio confessional! Da segunda apareceu-me um oficial nazi. Eu estava tranquilo, tomei um calmante: o meu corpo aceita os medicamentos com genuína eficácia. Fazem-me sempre efeito. Como eu não estava habituado a calmantes entrei num torpor pacífico absolutamente brutal, aceitaria naquela manhã o deflagrar da III Guerra Mundial sem particular desconforto.



Os engenheiros fazem parte desta tremenda engrenagem. São pop stars, são oficiais nazis, inatingíveis, incomunicáveis, prepotentes. A designação académica tem mais a ver com o temor reverencial do que com a formação. Quanto engenharia é necessária para ordenar vire à direita? Nenhuma seguramente. Estes engenheiros mereceriam também um estudo profundo: como são escolhidos, se a má disposição é congénita ou adquirida com treino, se acasalam com outras espécies, se já nascem afinal engenheiros.



Tantos reveses não me tiraram a convicção de que sou um bom condutor. Tenho essa certeza assim como 99% dos homens o que é, convenhamos, estatisticamente impossível. A condução é o oposto da vida real. Na condução os homens são complexos e as mulheres previsíveis. Pela condução os homens são asseados nos seus carros e as mulheres absolutamente desleixadas. Tudo exatamente ao contrário. As mulheres cabem apenas em duas tipologias: as descontraídas e as contraídas. As descontraídas conduzem como se não estivessem a conduzir. As contraídas conduzem apertadas entre o banco e o volante, sem qualquer centímetro de folga, sempre tensas como o capitão de barco no meio da tempestade, nada ouvem ou veem além da necessidade de terminarem aquele extenuante tarefa. Os homens têm cerca de 432 tipos: os fangios, os agressivos, os passivos, os legislativos sempre a apontarem as novas regras, os irascíveis, os solitários que conduzem como se a estrada fosse o seu estado de espírito, os imprevisíveis, e os que conduzem de chapéu ou boné, de longe os que mais me apavoram. Lincoln referiu que só dando poder a um homem é que se perceberia, realmente, o seu carácter. Se ele vivesse nos dias de hoje substituiria, sem hesitar, o poder pelo carro: deem um carro a um homem e irão perceber, realmente, quem ele é.



Conduzir na cidade de Nápoles foi o meu mais perfeito exame e o reforçar da minha convicção. Nada prepara um homem não napolitano para conduzir em Nápoles. Nada! Quando saí da garagem questionei no meu mais aprumado italiano posso girare a sinistra? Ele arregalou os olhos como quem tenta perceber um extraterrestre e eu compreendi logo ali que poderia virar à esquerda, à direita, sobre a linha contínua, pelo vermelho adentro, poderia tudo! Uma pista de carrinhos de choque é, comparado com Nápoles, de uma organização e aprumo teutónico. E no meio daquela selva de chapas amolgadas lembrei-me do engenheiro que me chumbou, da segunda vez, por ter dado duas voltas a uma rotunda. Tenho perfeita consciência da raridade da situação provocada pela calma bovina de que me vi então imbuído. Chumbei de forma inconstitucional, deveria ter recorrido para o Tribunal! Tarde demais agora. Palerma gritei-lhe eu no trânsito de Nápoles, com um ódio esférico e retroativo. E os napolitanos chamaram-me nomes mas de uma maneira ... fraternal. Abri a janela e gritei: a fare in culo ingegnere.

Publicado in O Comércio de Guimarães, a 24 de abril de 2019
Imagens: filmes Locke (2013) e Pierre Le Fou (1965); classics world.co.uk (2ª) e La Republica Napoli (última)

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