Supertição



Prefiro treze a uma mesa do que doze: sempre há mais possibilidades de conversa. Já passei por baixo de escadotes e parti espelhos sem que qualquer angústia me assaltasse. No entanto o futebol, ou mais propriamente o Vitória, condensou toda a superstição que não desbaratei em gatos pretos ou em saleiros derramados sobre a mesa. 

Quando vivi nos Palheiros a minha casa era o lugar de encontro dos meus amigos para irmos à bola. Um grupo de amigos - igualmente supersticiosos de ocasião- e com os quais partilho alegrias e tristezas da bola há décadas. Quando as coisas corriam mal veio-nos a superstição de que a coisa só melhoraria se fossemos pela Rua da Santa Luzia. Não recordo o motivo preciso de tal paranoia. Talvez um jogo em que mudámos de trajeto e a coisa correu bem. Lembro-me, isso sim, numa época desgraçada já estarmos na Francisco de Holanda até que alguém reparou na falha. E lá viemos nós para trás, subindo a Gil Vicente toda até engatar (sem batota) no início da Rua de Santa Luzia. E fizemos isso outras vezes de forma preventiva. Não me lembro se a coisa correu sempre bem de cada vez que o fizemos, provavelmente não, recordo apenas o angustiante alívio de termos feito a nossa parte.



Na final da Taça que ganhámos em 2013 estava sentado atrás de três senhores que muito estimo. Quando o Soudani marcou o golo a alegria foi tão grande que parecíamos peças de roupa dentro de uma máquina de lavar em pleno funcionamento. Quando nos íamos sentar reparei que eles, com os festejos, trocaram de lugar. Os segundos que então passaram foram uma tortura para mim, pareceu-me uma hora de aflição: vai dar azar, eles não poderiam ter trocado de lugar! Enchi-me de coragem e ordenei-lhes – o termo é mesmo esse – que trocassem de lugar. Eles surpreendidos, mas estranhamente obedientes, assim o fizeram. Mal se sentaram novamente nos locais devidos o Ricardo arranca por ali fora e marca o segundo golo. Novo rebuliço e eles, depois do segundo golo olharam para mim, como crianças, para que eu afiançasse que eles estavam efetivamente no local certo. E estavam. Ainda bem que eu os recoloquei nos lugares ... aquela troca deu-nos a taça.



Tenho atualmente cinco camisolas do Vitória. Algumas já com alguns anos. Acho que deveríamos ir todos para o estádio com a camisola do nosso clube, no entanto isso raramente funciona comigo pois há sempre um jogo importante que me arruína com a camisola. Só a visto novamente quando já não me lembro do motivo pela qual a releguei para a pacatez do gavetão. Mesmo a camisola com que fui à final ganha no Jamor já a corrompi por a ter levado à final de 2017. Azar.
No entanto o uso de camisolas é um barómetro muito fidedigno da hipocrisia de ser da maioria dos adeptos das três pragas bíblicas. De férias em Esposende assisti ao pré e ao pós Benfica-Porto na marginal. No dia do jogo só se viam camisolas do Benfica nas ruas, com aquele ar emproado de quem iria reduzir o Porto a cinzas nessa noite. Não vi o jogo. No outro dia, nas mesmas ruas, nem uma camisola do Benfica se via e – milagre! – as ruas encheram-se de portistas. Assombroso. Isso realmente incomoda-me e percebo que o efeito que a catequese diária das três pragas nas televisões e jornais dá mesmo resultado e amestra acólitos. Nesse mesmo fim de semana empatamos com o Famalicão. Na segunda peguei numa das minhas camisolas – uma Kappa lindíssima do ano em que descemos de divisão - e fui comprar pão. O dono da padaria percebeu o meu gesto e fez um comentário solidário. Percebeu que para nós o Vitória não é um casaco que se tira e põe: é uma pele.

Não é preciso ser supersticioso para perceber que qualquer jogo apitado pelo Xistra ou pelo Soares Dias nos vai correr mal. Isso é solidamente científico. Os três pontos em quatro jogos não me desanimam pois eles são o pecúlio possível no adverso mar de contingências que esses jogos nos aportaram. 
No entanto apesar da falta de sorte, chamemos-lhe assim, o Vitória apresenta um futebol intenso e interessante (magnífico, sem dúvida, o trabalho do Ivo Vieira) que certamente se tornará mais sólido com os reforços que nos chegaram em ondas de uma discrição e eficácia pouco habitual nas direções dos clubes de futebol. Agradeço, enquanto vitoriano, aos que trabalham para que a nossa superstição seja menos necessária. No entanto não convém facilitar. Qual é o cachecol que não dá azar para o jogo com o Aves?...


Publicado in Desportivo de Guimarães (10 de setembro de 2019)
Imagens: Radio Voz da Planície, guioteca.com e Bud Light

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