A parede





Quando foi o sorteio para a fase de grupos da Liga Europa comentei com alguns amigos a minha profunda satisfação pelo Vitória ter de defrontar as equipas que lhe calharam em sorte. A dificuldade do grupo tirou-me, enquanto adepto, qualquer esperança na qualificação, pelo facto das equipas do nosso grupo serem claramente mais fortes que o Vitória. A falta de expectativa na possibilidade de qualificação tranquilizou-me enquanto adepto, e sobrou apenas o antecipado gozo de assistir a bons e intensos jogos.
Decorridas duas partidas nesta fase de grupos fiquei com a perturbante sensação de que afinal o impossível não o era. Na verdade poderíamos ter ganho os dois jogos, não fosse alguma falta de sorte e uma dose não menosprezável de burrice ... há certamente a imperiosa necessidade de avisar o talentoso Davidson de que o futebol é um jogo colectivo e não um concurso de exibições individuais. Sentir que existiu a franca possibilidade de termos feito melhor aborreceu-me.



Os adeptos do Vitória são como as aves e voam com particular facilidade quando os ventos são de feição e os profissionais que nos representam têm o talento e a dedicação que vemos este ano. No entanto lá no alto, sem nos apercebermos disso, há sempre uma invisível parede contra a qual esbarramos. E lá vimos nós por ali abaixo. Inevitavelmente.
Às vezes por culpa nossa, muitas das vezes por culpa alheia. Lembro-me de muitas dessas paredes. O Garrido em 1975 quando nos tirou o quarto lugar aqui em Guimarães e passado um ano a Taça nas Antas. Em 1986 quando fomos em monumental peregrinação à Luz, a dois pontos do Benfica, a ganhar 0-1 até que o José Guedes nos construiu rapidamente uma intransponível parede. O execrável holandês que em 2008 anulou o golo ao Roberto, ao minuto 86 que nos daria a qualificação para a fase de grupos da Champions!



No entanto a distintiva característica que nos define enquanto adeptos não é a parede contra a qual frequentemente esbarramos mas, isso sim, a nossa capacidade de voar. De cair e voar novamente. De não desistir. De não trocar o clube que nos identifica por um clube sem paredes mas, convenhamos, sem qualquer ligação ao nosso passado e à nossa história comum. De permanecer fiéis, de pagar religiosamente as nossas quotas independentemente dos resultados, ou de não gostarmos do presidente do clube, ou das dificuldades económicas pelas quais passemos. De ser Vitória aconteça o que acontecer.



É fácil apaixonarmo-nos pelo Vitória. Basta ser de cá ou ter ligações a Guimarães. Porque ser do Vitória tem mais a ver com a comunhão colectiva em que participamos do que com outra coisa qualquer. 
Há um episódio que eu julgava ser fruto da minha imaginação, tão pouca informação sobre ele existe, mas acho que não é. Foi a 4 de dezembro de 1977 um domingo ensolarado, disso lembro-me. Eu, um miúdo morando a dois passos do Toural, vim ver o ajuntamento de pessoas que se preparavam para ir ver o jogo Riopele-Vitória. Uns de bicicleta e outros, loucos, de gancheta com uma roda que se propunham percorrer mais de 14 km para ir ver o seu clube. Não sei se era de ser pequeno mas aquilo pareceu-me uma multidão. Vim até ao fundo da Conde de Margaride vê-los partir. A fechar a procissão vitoriana ia uma carrinha com um pipo para alimentar os atletas com uma espécie de red bull verde tinto. Naquela altura os ocasionais atletas não iam de sapatilhas, nem de t-shirt fluorescente. Mas sim de casaco, camisa, calça de fazenda e sapato duro. Não sei quantos lá chegaram, certamente muitos repescados por automobilistas que deles se condoeram. Achei aquilo uma maluqueira e senti um formigueiro de orgulho clubístico que muitos miúdos sentirão ainda hoje noutras situações. Não fui ao jogo, era pequeno e ninguém me levou. Ganhámos 1-2 com golos de Mané e Romeu, no Riopele jogava o Jorge Jesus.



Tive uma tia, já não a tenho infelizmente há alguns anos, que era muito bem disposta. Chamava-se Ana, mas era conhecida por Aninhas. Quando calhava de 
sonhar que voava – e isso nela era frequente – ela ficava mais bem disposta ainda. Nesses dias ela era a tia perfeita. 
Ela percebia, como muitos vitorianos percebem, que importante importante é voar.


Publicado in Desportivo de Guimarães a 8 de outubro de 2019.
Imagens de autocarros a partir excelente blogue do Nuno Saavedra  (Andrew Johnson, tug.com e Werner Hardmeir) , + elevenwarriors.com + Notícias de Guimarães de 9.12.1977 (Arquivo Municipal Alfredo Pimenta)

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