O poder do futebol



O futebol é hoje um rolo compressor que tudo esmaga debaixo do seu peso. Se há umas décadas atrás o fenómeno era fundamentalmente europeu, hoje conquistou mercados como o asiático ou o norte-americano gerando mais dinheiro do que aquilo que seria imaginável. E já se sabe: quanto mais dinheiro e interesses, mais opacidade e truques.

A popularidade do futebol, desde sempre, a ver com a facilidade com que é jogado. Desde miúdos que só nos era necessário uma bola, um espaço e companheiros de jornada. Mais nada. 
Ao futebol, como ao desporto em geral, era associado um toque de verdade, mérito e cavalheirismo. Recordo o que me contou um prezado amigo que em miúdo acompanhou o Vitória no glorioso jogo que permitiu ao nosso clube fixar-se no Campeonato de Portugal de futebol após vencer o União de Lamas por 6-4 no Campo da Constituição, no Porto, a 11 de janeiro de 1942. Disse-me ele que um dos golos do Vitória furou as redes do guardião adversário e o árbitro achou que não era golo e mandou que se marcasse o respetivo pontapé de baliza. O guardião Reis do União de Lamas foi falar com o árbitro e disse-lhe que efetivamente havia sido golo. O árbitro validou-o após essa curta conversa. Uma honestidade tão genuína quanto impossível de se repetir nos dias de hoje em que o futebol é tão transparente e visível quanto a carne de uma tartaruga assustada. Por vezes vemos-lhe a cabeça e as patas ... mas a maior parte das vezes nem isso.

O problema não é só português. Por mais que achemos estranho, como a Ana Gomes corajosamente o acha, que o João Félix tenha sido vendido pelo dinheiro que foi. Ou por mais que nos assaltem as imagens de Pinto da Costa ladeado por elementos dos Super Dragões, qual chefe de mafia, aquando do interrogatório no Tribunal de Gondomar no âmbito do processo Apito Dourado. Tudo isto se tornou estranhamente normal. Estamos tão enfeitiçados pelo futebol que não reparamos no óbvio, ou se o vemos a nossa hipocrisia de reserva funciona plenamente pois somos deste ou daquele clube. Eu incluído. O Paris Saint Germain safa-se da acusação de falta de fair-play financeiro (que obriga a que nenhum clube tenha num período de três anos um défice superior a 30 milhões de euros) após comprar Neymar por 222 milhões de euros e Mbappé por 180 milhões e não vermos receitas que cubram essas despesas. Os clubes ingleses ficaram igualmente na mãos de oligarcas russos com dinheiro de origem duvidosa, de árabes ou de americanos aos quais não se conhece qualquer ligação ao clube ou recomendável passado.

Perdoamos no futebol coisas que não perdoamos, por exemplo, na política. Por uma pequena fração daquilo que se vislumbra no futebol governos caem e ruas enchem-se para exigir, e bem, a demissão dos ladrões. O futebol passa ao lado porque sim. 
E os governos, face à força do futebol e dos clubes mais representativos, fecham os olhos e assobiam para o ar. Em Portugal ninguém se atreve a tocar nos privilégios das três pragas bíblicas, pelo contrário. Apesar disso o presidente do Sporting trava hoje uma luta contra o poder e impunidade das “suas” claques, mas tudo isso vai parecer bizarro caso o Sporting perca mais uns jogos. Atores de Hollywood veem as suas carreiras arruinadas por coisas parecidas com aquela de que Cristiano Ronaldo foi recentemente acusado (espero que injustamente!). Mas é o Ronaldo e a coisa passa. Os búlgaros entoam cânticos racistas num jogo em que foram cilindrados pelos ingleses ...e vão ter um jogo à porta fechada, nada mais.

O futebol é (cada vez mais) um mundo à parte. E a culpa é nossa.

Publicado in Desportivo de Guimaraes a 5 de novembro de 2019

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