O ETERNO RETORNO





Depois de três meses sem futebol eis que ele regressa com estádios vazios – o que contraria a sua essência de desporto de massas – mas com os mesmos tiques do costume. Bastou ligar a televisão, nem que em breves zooms, para perceber que tudo estava afinal igual. Os comentadores apopléticos do costume, a análise à exaustão de Benfica, Porto e Sporting, as pequenas coisas sem interesse nenhum que se escalpelizam à náusea, os adeptos de claques que (mesmo “não existindo”) atacam atletas e treinadores. O costume.


Por mais que a nossa cabeça esteja desmemoriada convém não esquecer o que se passou e ainda passa no mundo. A dimensão avassaladora da pandemia esteve e está connosco e vai continuar a deixar as suas indeléveis marcas na economia, nas relações pessoais, na nossa segurança comum, nas formas de governação, no nosso futuro. No pico da crise, quando desviávamos até o olhar das imagens que nos chegavam a propósito do que se passava nos hospitais com doentes da Covid-19, tudo parecia não importar para além disso. E não importava efetivamente.


O futebol é um desporto popular pois, na sua génese, é democrático. Basta uma bola, um espaço e parceiros e em qualquer parte do mundo ele pode ser jogado. Essa facilidade tornou-o querido pelo mundo e a adesão de clubes e seleções à representação de cidades, regiões e países, deu-lhe o toque sociológico que o desgraçou. E aquilo que era apenas desporto e saudável competição, passou a ser um estandarte da força de uma determinada comunidade e alienou. Essa alienação trouxe poder e com o poder veio o dinheiro. E chegamos hoje a um patamar absolutamente louco em que uma elite de jogadores de futebol ganha o dinheiro que daria uma vida condigna a milhões e milhões de pessoas. Os grandes clubes gastam e exibem colossais fortunas, entrando amiúde em esquemas pouco claros e indignos de uma sociedade civilizada e do primado do estado de Direito. Lemos por estes dias notícias relatando situações que sabíamos existir, mas ainda ninguém por elas tinha dado em termos de investigação: a influência dos clubes poderosos, neste caso o Benfica, mas poderiam ser outros. Os clubes grandes através de empréstimos duvidosos, de compras inexplicáveis, mantêm dependentes outros clubes. Uma vergonha. Mas toda a gente (habitualmente) fecha os olhos porque é futebol. Até em Portugal se percebe que para cair nas malhas da justiça têm que os dirigentes já não ter poder algum. E esta falta de pejo é alimentada pela alienação coletiva ou pela indiferença ao mundo à parte em que o futebol se tornou. E no pico da pandemia vimos várias classes profissionais arriscarem a vida em prol de outros, vimos os artistas tentarem animar os seus concidadãos com a sua criatividade, vimos dirigentes sem dormir a tentarem manter o bom senso num mar absurdo de problemas e incertezas científicas. E do futebol, o que vimos? Desse desporto em que se ganham milhões e se alienam multidões que contributos poderemos reter? Posso estar a ser injusto, mas eu retive fundamentalmente a imagem de jogadores a darem patéticos toques em rolos de papel higiénico o que, diga-se, atestou claramente a indigência intelectual de quem o fez naqueles momentos graves e pesarosos para a humanidade.

Não ignoro o cuidado que alguns clubes tiveram - o Vitória incluído - em apoiar instituições e os sócios mais velhos. Mas, bem vistas as coisas, tudo pareceu muito pouco para a importância social e económica que o futebol atingiu na nossa sociedade atual. E o retorno que o futebol deu à sociedade que o alimenta foi pouco, eu diria até nenhum!

Espero sinceramente que tudo o que se passou nos abra os olhos e que recoloquemos o futebol no seu lugar: é um desporto, apelativo e interessante, mas apenas isso. Não é seguramente a coisa mais importante das nossas vidas, longe disso. E será avisado que este retorno de circunstância ao futebol não seja sempre eterno. Que retornar não implique ficar cego novamente, perder o espírito crítico. Eu inclusive. 



Publicado in Desportivo de Guimarães em 9 de junho de 2020.
Imagem. Friderich Nietzsche  1882 Wikipédia

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