GRANDE JOÃO



 

O ciclismo é um desporto muito popular. A sua popularidade advém do espetáculo que a superação dos ciclistas nos oferece e, por outro lado, pelo caráter democrático das provas. O ciclismo deve ser dos poucos desportos profissionais em que não se paga entrada. Há as despesas da gasolina e do abastado lanche, claro, já que os verdadeiros fãs da modalidade transformam estes momentos num verdadeiro acontecimento de camaradagem e fraterna libação.

Hoje em dia, com a qualidade das transmissões da modalidade, o desporto ainda é mais popular pois tem um acentuado dramatismo e isso assenta, como sabemos, muito bem em televisão. O ciclismo é hoje globalizado, tendo gerado um poderio económico que os antigos ciclistas estariam longe de imaginar. Em Portugal o ciclismo é igualmente popular. Ao longo das várias décadas a Volta a Portugal pintou as estradas nacionais com o seu colorido, mas na verdade, à exceção de Joaquim Agostinho, nenhum ciclista nacional se impôs verdadeiramente no circuito europeu e mundial da modalidade. Não poderemos naturalmente esquecer as prestações de Rui Costa, Sérgio Paulinho, José Azevedo, Acácio da Silva, mas só Agostinho, até hoje, conseguiu cravar durante algum tempo a bandeira portuguesa no competitivo solo do ciclismo internacional. E as grandes voltas (Tour, Giro e Vuelta) são verdadeiramente o grande palco do ciclismo. Agostinho, um fenómeno de força e determinação, só começou a praticar ciclismo aos 25 anos! Mesmo assim deixou marcas na sua carreira internacional, ficando duas vezes em terceiro lugar no Tour de 1978 e de 1979, já com 35 e 36 anos respetivamente, atrás de Bernard Hinault e Joop Zootemelk, obtendo ainda um brilhante segundo lugar na Vuelta em 1974 apenas a 11 segundos do vencedor, o espanhol José Manuel Fuente.



 

João Almeida foi este ano, no Giro d’Italia, uma surpresa para todos nós. Determinado e exibindo uma classe extraordinária este jovem português inscreveu o seu nome na galeria, pouco abundante de feitos, do ciclismo português. Para sempre.

Acompanhar, como muitos de nós acompanharam, este Giro foi um misto de sofrimento e de alegria. Mas acima de tudo, um enorme orgulho pela capacidade demonstrada, pela forma desinibida e ambiciosa como exibiu, aos olhos de todos, e sem medos, essa mesma capacidade. Terminar uma prova desta natureza em 4º lugar – a sua primeira grande volta - e envergar a camisola rosa durante 15 dias não é, seguramente, um acaso. Estava tentado a elogiar o feito pela juventude de João Almeida, mas, no entanto, não será adequado: o ciclismo tem sido recentemente invadido por jovens talentos que o tornaram ainda mais competitivo. Provavelmente o controlo antidoping atual ajudou a esta invasão da juventude, talvez.

E o que dizer de Rúben Guerreiro? O primeiro ciclista português a ganhar uma camisola no final de uma grande prova. Neste caso a difícil camisola da montanha. E com estes brilhantes atletas nacionais estão hoje no circuito internacional um conjunto já significativo de ciclistas portugueses: Rui Costa, Ivo e Rui Oliveira, na Team Emirates, Nélson Oliveira na Movistar e, mais recentemente, André Carvalho na Cofidis. Podemos por isso continuar como país a ter sonhos cor-de-rosa, e amarelos e vermelhos. Oxalá.




 

A nossa Volta a Portugal em Bicicleta foi perdendo brilho, competitividade e importância. Já pouco gente lhe liga. Eu já dela me desliguei há muito. Sonharia somente uma Volta a Portugal que só passasse por sítios bonitos. Que passasse pelo Douro quando a folha da vinha ganha já tons de vermelho, pelas praias de interminável beleza do litoral alentejano, pela Citânia de Briteiros. Isso é que era, apesar da dificuldade que seria, num país tão bonito quanto o nosso, passar apenas por sítios belos, tal foi e continua a ser a malfadada destruição e descaracterização da paisagem que, de norte a sul, do interior ao litoral, se continua loucamente a cometer. Os nossos mais valiosos ciclistas já nem passam pela volta nacional, tiveram a capacidade de serem cobiçados por grandes equipas e ainda bem, para nós e para eles. Entusiasmamo-nos agora com as grandes voltas. Da nossa volta pouco ficou. Vejam lá que até desapareceu aquela música característica que a identificava. E quando se perde uma música tão ilustrativa quanto aquela perde-se muito.



Publicado in Desportivo de Guimarães a 27 de outubro de 2020

Imagens: Lusa/EPA, Luca Bettini/AFP, retirada do blogue casepaga

Comentários

Mensagens populares