O POVO ESCOLHIDO


Tenho, desde sempre, admiração pelo povo judeu. Sinto-me, sempre me senti, cosmopolita, sou culturalmente aberto à diferença e encanta-me muito mais a diversidade do que a obsessão pelo específico. No entanto os judeus, a sua história secular feita de sofrimento, desviaram-me sempre o olhar curioso sobre aquela cultura, sobre aquela religião, sobre aquela capacidade de resistir, sobre os erros que essa exacerbada identidade gera, sobre a culpa ou o orgulho, ambos extremados, que aquela forma de viver tornam absolutos. A religião monoteísta mais antiga do mundo, o judaísmo, bebe dos escritos seculares a razão de ser daquele povo. Na Tora reúnem-se todos esses livros e estabelecem-se as leis e os propósitos de um povo na Terra. 

 

Assumimos há séculos, em Guimarães, essa mesma convicção que os judeus assumiram: a de serem o povo escolhido. Não temos Moisés, mas temos D. Afonso I.

Daí que tudo para nós seja extremado. Seja na defesa dos valores da nossa terra e da nossa cultura, ou mesmo em coisas mais prosaicas, e aparentemente feitas para nos entretermos, como é o futebol. Ou, no nosso caso, o Vitória, o que não é bem a mesma coisa.

Épocas agonizantes como a que agora findou geram tristezas profundas, como as que acontecem quando ficamos doentes, ou desempregados, ou perdemos alguém que muito amamos. O que é notoriamente um exagero e uma profunda estupidez. Isto é apenas bola! E, não quero parecer sarcástico, ou até mesmo hipócrita, mas perdemos apenas a possibilidade de jogar umas pré-eliminatórias de uma competição nova e, a meu ver, profundamente desinteressante. 

 

Os adeptos do Vitória têm uma alma maior do que o corpo. Resistimos às vãs tentativas de fazerem de Guimarães mais uma terrinha de portistas, benfiquistas e sportinguistas, com um clube simpático na lapela. Enchemos o peito e repetimos, de forma demente, contra tudo e contra todos. E, com um alvo na testa, em vez de nos escondermos prudentemente de quem mal nos deseja, em vez de trabalharmos numa estratégia, unidos e cautelosos, expomos imprudente e alarvemente a testa a quem nos quer atingir. E na verdade, em termos concretos, temos como maior conquista a durabilidade e constância da nossa equipa no principal escalão do futebol português, e pouco mais. Um corpo demasiado pequeno para tamanha ambição. Mas achamos que devemos ser campeões de tudo e mais alguma coisa, exigimos sempre como se fôssemos adeptos do Barcelona, e cada vez que nos ultrapassam, o que é infelizmente comum, essa realidade não é sentida como uma contingência, mas como um ultraje. Não temos nunca tranquilidade: ou vivemos em euforia (raramente) ou em depressão (a maior parte das vezes). Às tantas, um bocadinho de humildade talvez nos fizesse bem a todos. Uma humildade condimentada com paciência e inteligência de grupo, sem ceder aos profetas de ocasião que ora nos querem mandar de volta para o Antigo Egipto, ora nos juram que a Terra Prometida está mesmo ali, ao dobrar da esquina. Talvez mais serenos não galgássemos degraus da forma sempre sôfrega como o fazemos, e nos quais inevitavelmente caímos, em vez de darmos os passos exatos que a nossa perna permite, a cada momento. O Vitória é o clube que tem tudo para ser admirado por outros, a sua história, a devoção dos seus adeptos, mas, de ano para ano, temos perdido essa aura antiga de bravos resistentes, para nos confundirem, a todos, com adeptos intolerantes e coléricos. Somos cada vez mais odiados e uma vítima perfeita para os fanfarrões do sistema, como é claro, agora, com os feéricos castigos que nos aplicaram. Mas, como povo escolhido que somos, a culpa nunca é nossa. É sempre dos outros.

 

Este ano o Sporting foi campeão e ainda bem. Não deixando de ser um clube do sistema, a presidência do clube lisboeta trouxe uma lufada de ar fresco ao futebol nacional. E tudo poderia ter corrido mal a Frederico Varandas, mas não correu. Enfrentando com coragem o legado populista que grassa no futebol há mais tempo do que na política, enfrentando o poder das claques, os seus desmandos e a cultura da violência que nelas grassa, conseguiu um feito notável: sagrar o seu clube campeão ao fim de quase duas décadas. O resto continua enervantemente igual: no Porto com Pinto da Costa e a política da ameaça e do insulto, e agora com mais uns casos para os quais a diligente claque estará seguramente disponível para qualquer necessária guarda de honra ao chefe, ou no Benfica em que o presidente pede centenas de milhões de euros ao Novo Banco, mesmo não tendo (supostamente) património pessoal, e os consegue à custa de todos nós, que vamos pagar os seus calotes, porque é presidente do Benfica. E ainda se ri com presunção. Ele, o grande Luís, que teve o atual primeiro-ministro como distinto elemento na sua comissão de honra. Honra ... notoriamente, hoje, uma palavra sem significado.

Por aqui não houve festejos alheios, como de costume. Mas poderiam ter acontecido, nem que com uma meia-dúzia de gatos pingados, que até não sendo de cá, universitários por exemplo, quisessem dar voz à sua natural e legítima alegria. Mas não. Por cá rapidamente se organizaram milícias no Toural para sovar quem ousasse festejar. Uma vergonha para quem o fez. Mas uma vergonha também para todos os que fecham os olhos à intolerância que mancha, repetidamente, o nome do nosso clube. Apesar de não ter sido notícia, situações como esta são aqui comuns e perturbam a consciência de quem a tem. Sobre o falso de pretexto de paixão, exibe-se de forma frequente, e com o silêncio complacente da maioria, a mais despudorada e vergonhosa violência. Mas como somos o povo eleito, siga.

Sinto, confesso, algum (venal) preconceito contra gente de Guimarães que não é do Vitória. Mas apenas isso, era incapaz, como a maioria dos vitorianos o serão, de ameaçar alguém por isso. Já me incomodei algumas vezes com gente reles e cobarde que agrediu outros adeptos, só porque sim. Uma vez, com amigos meus, tive de me defender de uma canalhada violenta que nos atacou quando protegemos um casal de namorados, aos quais queriam tirar camisolas e cachecóis. Atualmente já não teria coragem para isso. Mas, a culpa nunca é nossa, é sempre dos outros. O povo eleito é intocável e desviamos, época após época, os olhos daquilo que nos deveria (verdadeiramente) incomodar, mais do que os resultados, os treinadores, os presidentes.

 

Moisés demorou quarenta anos a atravessar o deserto, libertando assim o povo judeu da escravidão do Antigo Egipto. Morreu, relatam os escritos sagrados, pouco antes, de entrar na Terra Prometida. Nós vamos fazer cem anos para o ano, na nossa longa caminhada. Se tivermos a sabedoria de nos concentrarmos no prazer da caminhada, em vez de estarmos tolhidos na obsessão pela Terra Prometida, com que frequentemente nos aliciam, talvez consigamos (finalmente) ir mais longe. Ou pelo menos ver mais longe.

 

Publicado in Desportivo de Guimarães, a 25 de maio de 2021

Imagem: Série Shtisel. Netflix.


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