MARMELADA


É neste mês de setembro que começam a aparecer, em nossas casas, as malgas de marmelada. E não têm marca. As boas coisas, apuradas ao longo de séculos, não se deixam encapsular por designações comerciais, são excecionais por si só, são sustentáveis mesmo sem pensarem nisso. Vertem-se para as malgas que temos em casa, comem-se, deixando apenas um fino resíduo circular de papel vegetal, nada mais.

E eu, sempre numa luta (não muito feroz diga-se) com o meu peso, não consigo passar pela minha cozinha sem lhe dar uma breve, mas convicta, talhada. A manhã, ou a tarde, ou a noite, ficam com outro sabor. É uma irresistível tentação.

 

Para a minha geração a marmelada era o suplemento açucarado vital. Longe das marcas de coisas que nos empanturram, nos deixam mais pobres e muito mais gordos, o pão com marmelada era um clássico dos recreios da minha infância. E nem sequer era necessário a muleta pós-moderna do queijo: a marmelada bastava-se a si mesma. As aulas paravam e lá se ia à pasta buscar o pão com marmelada, na saquinha de pano apropriada, um delicioso suplemento energético, sem edulcorantes eufemísticos, que davam a energia suficiente para correr atrás de uma bola durante horas e, ainda, resolver complexas contas de dividir, no tempo em que essas contas não tinham apenas números, mas uma dignidade muito especial de conjuntos de números a que se dava o nome de divisor, dividendo, quociente e resto. E a prova dos nove lá estava para verificar a nossa proficiência. Ou não.

Como nos grandes cismas religiosos, havia quem preferisse a geleia à marmelada, de forma militante. A geleia era mais delicada, mas mais incontida e tendia a sujar sem contemplações os livros e os cadernos. Eu gostava das duas, mas eu era mais marmelada. Prefiro sempre a substância à forma.

 

O que é absolutamente extraordinário na marmelada é o delirante exercício de reciclar um fruto imprestável como o marmelo é. Quem já o provou, sabe que aquilo é uma espécie de maçã de péssima qualidade. Há uns anos atrás era tudo efetivamente muito prático. Os frutos que prestavam comiam-se, sem precisar de os disfarçar com açúcar como hoje, era estúpido, e aqueles que, como o pobre marmelo, não prestavam para nada, eram mascarados com uma quantidade epopeica de açúcar e passavam, subitamente, a ter interesse e propósito sob a forma de marmelada. Num nível superlativo de reciclagem, aproveitavam-se as cascas de um fruto fraco como o marmelo, para fazer geleia. 

Mas a história da marmelada vem de longe. Vasco da Gama levou-a consigo na sua visionária missão das Descobertas e assim foi amaciando os povos “descobertos” com aquela deliciosa compota. Infelizmente, não percebeu que se tivesse dado a marmelada aos seus marinheiros teria evitado a horrível morte pelo escorbuto de muitos deles, já que o marmelo possui uma quantidade apreciável de vitamina C. Perdeu na equipa, ganhou na diplomacia. Outros tempos.

 

Como todas as coisas claramente boas, ou mesmo claramente más, palavras como marmelada ganham outros sentidos para além da sua semântica mais clássica e expectável. Nas escolas secundárias existiam, no meu tempo, vários níveis de prática de namoro público que era, por ordem crescente, “estar de mãos dadas”, “estar aos beijos” e, o mais esfuziante, “estar na marmelada”. Chegar a este terceiro nível não era para todos. Era para os mais ousados, para os mais descarados, para aqueles em que o fluxo hormonal adolescente já havia tornado o cérebro um impotente refém. Acho que fui um bom aluno na secundária (apesar de, normalmente, pintarmos o nosso passado com cores mais berrantes e positivas do que aquelas que efetivamente experimentamos) pois não passei pelo nível 3. Infelizmente para mim. Olhava com uma certa inveja os meus colegas que entravam atrasados na aula, após experimentarem mais um quarto de hora do nível 3, e compreendia ser impossível que aquele cérebro, refém das tirânicas hormonas, se pudesse concentrar na resolução de um sistema de 3 equações a 3 incógnitas, no movimento uniformemente retardado, ou na fantástica poesia do Álvaro de Campos. Impossível.

Atualmente já não se vê, nas secundárias, uma prática tão militante dos níveis 2 e 3, quanto o que acontecia quando eu era adolescente. Terão provavelmente mais oportunidades - do que as que tivemos - para o fazer recatadamente. No entanto, num presente em que toda a gente tem uma opinião muito vincada sobre tudo, muito sectária, muito de vida ou de morte, numa altura em que se abandona o reflexivo “parece-me que” para o ditatorial “tenho a certeza que”, a marmelada faz falta. De um tipo ou de outro, mas sempre marmelada.




“À sobremesa apareceu o Videirinha (...) e só aceitou um copo de Alvaralhão, em que esmagou um ladrilho de marmelada para adocicar a goela.”

Eça de Queiroz. A ilustre Casa de Ramires. 1900.


Publicado in O Comercio de Guimarães em 22 de setembro de 2021


Imagem retirada do blogue Coisas&Stuff



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