25 de abril sempre

 


A 24 de março de 2022 Portugal completou 17500 dias passados sobre o 25 de abril de 1974, ganhando assim, por um dia, ao período anterior que se estendeu desde o golpe de Estado de 28 de maio de 1926 até à data em que o Estado Novo caiu. 

É para mim absolutamente surpreendente esse marco. Quando eu era pequeno, ouvia repetidamente falar dos 48 anos de ditadura, como um período de tempo tão longo, tão grande, tão intransponível, tão granítico, que a minha imaginação não se atrevia a prever uma ultrapassagem numérica dos dias em democracia sobre os dias em ditadura. Mas aconteceu, e ainda bem para o país e para mim que, de forma tão abismada, o testemunho.

Era muito pequeno quando se deu o 25 de abril, e pertenço a uma família que entrou em paranoia com os desmandos do PREC, mas mesmo muito jovem nunca desdenhei, pelo contrário, do valor da liberdade. Ouvia com o interesse possível para a minha juventude os debates políticos, ouvia também as notícias em português da BBC, em onda média, como anos antes os opositores da ditadura o faziam, e aquele fervor revolucionário dos primeiros anos de democracia era tão vibrante e estimulante que eu parecia habitar num país novo. Espreitava o Expresso, espreitava o jornal Tempo que entrava em minha casa à quinta-feira, espreitava as capas satíricas da Gaiola Aberta que amontoavam transeuntes no eterno Quiosque do Cantinho, ali mesmo ao pé de minha casa, espreitava também, de forma furtiva, algumas revistas francesas, com mulheres nuas que negligentemente eram deixadas ao meu olhar na Livraria Raúl Brandão. Que país fantástico se construía enquanto eu fixava, boquiaberto, as mamas de uma escultural mulher. 

Não alinho, nunca alinhei, com a tentativa injusta e maniqueísta de reduzir o 25 de abril a um casual episódio que libertou na arena política uma data de gente pouco recomendável. Fez parte. E o 25 de novembro de 1975 é, apesar de importante, o abrir mais a porta que abril destrancou. O dia inicial inteiro e limpo de Sophia, continua o mesmo.

A conquista da democracia é, para mim, uma realização absoluta e ainda devo, hoje, isso aos homens saíram para a rua e depuseram aquele regime obsoleto. Os Salgados, os Sócrates, os Vieiras, não são um resultado da democracia, mas uma consequência da falta de vergonha, da ambição desmedida, enfim, da natureza do homem. Atacar a democracia só porque estas coisas existem é desonesto. Hoje sabemos, pelo menos, que assim é. Noutros tempos nem isso. E, olhando para o mundo hoje, saberemos igualmente que a luta pela democracia não é uma coisa datada, ultrapassada, mas uma luta de hoje e uma luta de sempre.

 

O país mudou imenso, entretanto. Um conjunto de valorosos políticos conseguiu que aderíssemos à então CEE. Eu sei que a nossa prestação não foi, e não o é hoje, económica e socialmente, a melhor, mas ainda sou do tempo em que a realidade dos países do centro da Europa relativamente a nós era absurdamente diferente. Hoje já não o é, apesar de tudo.

No entanto, como gente apegada ao património que somos, mesmo o mais anquilosado e descartável património, foi conservado: a ditadura no futebol.

Se antes do 25 de abril tivemos um campeão fora dos três eucaliptos do costume (o Belenenses) não emergimos da noite e do silêncio nestes 17500 dias de futebol. Tivemos um novo campeão (o Boavista) pois o major decidiu arregaçar as mangas e, episodicamente, conseguiu - controlando o poder da Liga - beber da poção mágica que se consubstancia na falta de lisura e de verdade desportiva no campeonato português de futebol, que alimenta, à vez, os três eucaliptos.

Quando o futebol é, acima de tudo, um jogo em que nem sempre os mais ricos e históricos ganham, pois é exatamente isso - um jogo-, porque carga de água temos tão poucos campeões? A Alemanha tem 29 campeões diferentes, a Inglaterra 24, a França 19, a Itália e a Bélgica 16, e até a Espanha do generalíssimo Franco conseguiu ter 9 campeões. 

Se antes do 25 de abril havia uma certa mansidão na forma como se encarava a ditadura dos três, era de bom tom não questionar, depois do 25 de abril é absurdo pensar que clubes como o Vitória (em particular nas épocas de 85/86, 86/87 ou 89/90, ou mesmo através das magníficas equipas do pós-25 de abril), ou o Braga, não tenham conseguido ganhar campeonatos. Mesmo o Boavista mais do que uma vez, ou, há mais tempo, o Vitória de Setúbal ou a Académica. No momento certo, creio firmemente, tiraram-lhes a possibilidade de lutar pelo título, quer por criativas arbitragens ou por absurdos castigos decididos pela oligarquia do futebol nacional. Lembro-me, por exemplo, no nosso caso, do escandaloso castigo ao Jeremias, precisamente na época ... do 25 de abril (74/75). O Diário de Lisboa, por essa altura, escrevia títulos como estes: “Jeremias na prateleira para alívio da concorrência” (9.1.75, p.21) ou “Guimarães protesta com a razão pelo seu lado” (10.1.75, p.20). Hoje, igualmente em democracia, não vejo qual o jornal que se atrevesse a dar títulos contra a “verdade” dos três, a justiça do penalti que a favor deles marcam, ou do jogador adversário que oportunamente expulsam. 

Hoje, esse estado de coisas, essa ditadura de Porto, Benfica e Sporting, continua aflitiva. A máquina de propaganda dos eucaliptos é esquizofrénica e tentam-nos convencer, dia a dia, de que somos nós a estar malucos. E, se reparem, é dos três crónicos que se ouvem mais queixas sobre as arbitragens – eles que controlam as classificações dos árbitros e o que se diz e escreve-, amplificadas pela acefalia muito orwellianados seus seguidores.

Tenho um imenso orgulho em pertencer a um clube que subiu o número de associados e de assistência aos jogos, quando caiu, de forma absurda, mas possível, porque o futebol é um jogo, na segunda divisão. Tenho pena que outros clubes históricos não tenham igualmente essa capacidade de resistência, precisamente porque a lavagem cerebral (mesmo em democracia) é um facto ineludível, pesado e ditatorial. Os três, à força de venderem mais umas camisolinhas, tomaram conta, como os regimes ditatoriais o fazem, do espaço mediático e permitem assim aos tristes que se alegram, a tonta e pueril satisfação de se dizerem campeões. Campeões gritam eles, ufanos, por um clube de Lisboa ou do Porto, mesmo não sendo eles de Lisboa ou do Porto, ou não tendo raízes que os liguem a essas cidades. E essa tendência de se ser pelos crónicos continua, em democracia, a alastrar como um cancro e a reduzir os restantes clubes a ocasionais convidados de um triste espetáculo que, jornada a jornada, outros orquestram. E para o qual o Vitória e outros clubes são convidados para abrilhantarem um guião previamente escrito e definido, que não admite variações à norma.

Resta-nos, assim e sempre, a resistência firme e convicta, esperando um dia, como aconteceu em abril, habitar, finalmente, a substância do tempo. Como o perfeito poema de Sophia também a habita.


Publicado in Desportivo de Guimarães a 26 de abril de 2022

Imagem: Eduardo Gajeiro

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