VITÓRIA: UM FOGO SEM FIM


 

Um conjunto de maus resultados veio, novamente, atirar o Vitória para a fogueira da maledicência. Ninguém presta. Tem toda a gente de se ir embora, é o que se lê.

O Vitória tem uma história importante na qual, a sua massa associativa, fiel e dedicada, desempenha um papel central e principal. E assim o acho não pelo que li, mas pelo que vi e vivi, ao longo dos meus anos. 

 

A narrativa de que ser de Guimarães sempre foi ser do Vitória, não corresponderá inteiramente à verdade. Pelo menos no tempo todo. Sem dúvida que em Guimarães o apego ao clube foi sempre maior do que noutras cidades, mas, lembro-me, ser ainda um pouco exótico, mesmo na minha geração, dizer-se apenas que se era pelo Vitória. No meu grupo de amigos adolescentes, no final dos anos 70, isso era um facto, do qual fazíamos gala, mas noutros grupos era comum algumas simpatias (e às vezes muitas) pelos clubes do regime, o que apenas transmitia hábitos muito enraizados nas gerações que nos precederam. De há umas décadas a esta parte isso mudou, exatamente pela influência daquela geração – que eu acho ser a minha – e, naturalmente das que lhe seguiram. Hoje já é comum que uma grande maioria dos adolescentes e jovens adultos de Guimarães sejam adeptos e sócios do clube da terra. Há até – e eu incluo-me, envergonhadamente, aí – quem tenha preconceitos para quem não o seja.

 

O Vitória que eu conheci em miúdo apresentava boas equipas, sempre com um excelente meio-campo, e as direções que passavam pelo clube baseavam-se em homens da cidade e do concelho que, algumas vezes a contragosto, davam o seu contributo pelo clube, pois estavam a dá-lo igualmente pela terra que os viu nascer. E se digo a contragosto não o digo por não gostarem do Vitória, mas porque o clube lhes dava um conjunto de responsabilidades (especialmente as financeiras) que exigia muito deles, em prejuízo também da sua vida profissional e familiar. Isto, numa altura, em que não havia défice nas contas, pois se o houvesse, era à direção que caberia arranjar dinheiro para o eliminar. Ser presidente era, apesar da canseira, um cargo de prestígio na sociedade vimaranense. Havia, devido à exigência, uma rotatividade entre homens com sentido de clube e de responsabilidade, que saltavam para a presidência depois de terem exercido cargos diversos no clube. Nunca se era, exclusivamente, presidente do Vitória.

 

Essa postura fiel, amadora e dedicada, mudou com a eleição de António Pimenta Machado, em março de 1980. Andava eu ainda no início do secundário. A postura generosa, de grande dedicação à causa comum, foi mudando também noutros setores da sociedade vimaranense. A política, em Guimarães dominada praticamente desde os alvores da democracia por um único partido político, foi desempenhado progressivamente o seu papel democrático e, muitas vezes, foi para além disso, numa lógica pouco saudável de perpetuação do poder. São os mais visíveis defeitos de um sistema inegavelmente virtuoso: o democrático. E foi tendo, também, implicações nas próprias gestões do clube, nas tensões e subserviências que aconteceram. 

 

António Pimenta Machado traz o Vitória para um mediatismo incomum. Umas vezes por bons motivos, outras por maus motivos. O Vitória dos anos 70 era um clube muito querido pela generalidade dos adeptos de futebol em todo o país, reconheciam-nos a paixão, o bom futebol, mas, no fundo, ao nível superior, enterravam-nos sempre que era preciso. Não me lembro, não tinha idade para construir memória disso, mas, dizem-me, a época 68/69 foi uma vergonha e tiraram-nos qualquer hipótese de lutar pelo título. Mas lembro-me, aí sim, das vergonhosas atuações de António Garrido no último jogo do campeonato em 1975 e na final da Taça de 1976, ambas contra o Boavista. Cortavam-nos as asas sempre que era preciso, sempre que estávamos fortes e esses dois momentos, se corressem com a normalidade que deveriam ter decorrido, dar-nos-iam o alento e o músculo de ambição que merecíamos, os resultados que, em jogo jogado, tudo fizemos para alcançar. Pimenta Machado veio corporizar essa ambição. Ele foi presidente durante 24 anos, o que hoje representa um quarto da história do nosso clube e, na altura que saiu representava quase um terço da história do Vitória. Mais indelével, era difícil.

 

No entanto, todo a forma afirmativa de como António Pimenta Machado conduziu a instituição, não conseguiu derrubar os muros antigos nos quais esbarramos e, pior, vimos, ainda nos seus anos de presidência, o Boavista conquistar um título pelo qual ambicionamos, muito provavelmente, mais do que eles. Pimenta só sai porque se demite, não perdeu nenhumas das eleições a que concorreu. Méritos teve muitos, mas deméritos também. Os últimos mandatos são um reflexo disso. Não reconhece ninguém, além dele mesmo. Daí que muita gente que o apoiou, que trabalhou para o clube, como sempre havia acontecido, se afastasse do presidente, e alguns até – corajosamente - o combateram. A ideia anterior - a que o clube se havia habituado – de existir um grupo de pessoas unidas em torno de uma causa, desaparece com ele. Pimenta é omnipotente e omnisciente, apropria-se do clube e desrespeita, progressivamente, quem com ele trabalha, os associados, a sua voz. Noutras até os intimida, como aconteceu, de forma absolutamente infame, na assembleia dos capangas, a 6 de setembro de 2002. A saída de Pimenta levou muitos vitorianos a reconciliarem-se com o clube e assim, na presidência de Vítor Magalhães, o clube rapidamente duplica o número de sócios perante a abertura. Havia, então, uma ânsia de participação, de envolvimento, que se desencantou perante a estranha descida de divisão em 2006 que, muito à Vitória, fez aumentar ainda mais o número de associados. No tempo de António Pimenta Machado também se passaram épocas difíceis em que só nos safamos da descida de divisão na última ou na penúltima jornada (84/85, 87/88, 90/91 e 03/04). Mas não descemos.

 

Uma presidência assim, forte e longa, marca de forma perene o clube e condicionou o que se lhe seguiu. Nuca mais houve paz no clube, à exceção, talvez, do primeiro mandato de Júlio Mendes. A perda de um “pai” autoritário arrasou os “padrastos” que se lhe seguiram. O presidente do Vitória passou, nas novas circunstâncias, a assumir o papel de alvo ambulante, quando a época de caça, por força dos resultados, abria. Participar nos órgãos sociais também. O advento dos blogues e, mais tarde, das redes sociais trouxe em alguns casos – poucos – a possibilidade de participação mais ampla e democrática, mas, trouxe, acima de tudo o alimento gordo da insídia e do ódio entre os adeptos do Vitória. As Assembleias Gerais passaram a ser não um lugar onde se colocavam as questões, as divergências, mas o eco das barricadas que se foram formando na internet, e mesmo assim um palco secundário de discussão. Uma discussão que se transforma rapidamente em antagonismo, que balcaniza e enfraquece. Se eu apoio X, vou ter que ser contra Y. Se eu apoiei Y, vou ter que dizer mal de Z, e por aí adiante, como se o apoio pessoal a um candidato nos tirasse a possibilidade de escrutínio e crítica a esse mesmo projeto, ou impelisse a dizimar todos os outros projetos ou opções, só porque sim. E a coisa foi-se extremando não pelo pensamento de cada um, bom ou mau, mas pela voracidade de matilha que se estabeleceu atrás de alguns gurus que, com desvelo, tentam conduzir as massas enfurecidas pelos resultados menos abonatórios ... a sítio nenhum. Nunca vi, como neste clube, treinadores de grande classe serem arrasados nas redes sociais, na rua, como o foram aqui. Nem Rui Vitória escapou. Nada serve quando o caldo fermenta no ódio. Tudo isto levou a que muitas pessoas válidas e capazes se fossem afastando do clube. Há, hoje, infelizmente muito pouca gente que queira servir o clube e sujeitar-se a que os seus filhos sejam perseguidos e insultados na rua, que o seu nome seja enlameado pela turba acéfala, perante a falta de indignação da maioria. Sujeitar-se a que lhe escrevam no muro de casa, como escreveram na casa do Dr. Fernando Alberto, “morre velho!”. Ele, infelizmente, já morreu, mas lembro-me da dor que ele sentiu quando lhe fizeram isso. Ele que dedicou grande parte da sua vida, de uma forma honesta e exemplar, a servir o país e Guimarães, foi vilipendiado de forma torpe – ele que em vida tanto fez em prol do Vitória -, perante o silêncio dos “inocentes”, o absoluto mutismo, inação e falta de memória e agradecimento que um homem como ele deveria ter merecido dos adeptos do seu clube. Muito poucos o defenderam na altura, pois o clube estava a caminho da 2ª liga, e Fernando Alberto era presidente da Assembleia Geral, um dos muitos cargos que desempenhou no Vitória. A coisa queimava. Na Assembleia Geral, concorridíssima, de junho de 2006, o então presidente sujeita-se uma moção de confiança que ganha com larga votação entre os muitos sócios que lá foram, mas a fogueira estava ateada cá fora, na internet, na ameaça de rua, no insulto torpe, na insídia e ele cai. Quando a coisa queima há poucos homens e mulheres dispostos a imolar-se no fogo que não é deles. Infelizmente.

 

Ainda recentemente, e com muito menos impacto e gravidade, Esser Jorge escreveu, a propósito das alegações de racismo por parte de Boateng, que estava um elefante na nossa sala. Foi sovado verbalmente nas redes sociais. Depois do caso Marega, empolado de forma artificial, mas que tomou as proporções que tomou por inabilidade própria, depois do palerma de Portimão ter justificado o seu injustificável ato com o mesmo tipo de alegações, mais um caso destes, mesmo que inventado, tem de ter um tratamento de pinças da nossa parte, refletir pelo menos, mesmo não concordando. O Vitória é, nesta matéria, um alvo. Um ponto vermelho está apontado à nossa cabeça há muito e não falta quem, com vontade, queira puxar o gatilho. Se não for agora, será daqui a pouco. É fatal como o destino ... e aquele setor só nos tem causado problemas. Mas a narrativa que surge é outra, continua a ser nós contra o mundo. Por ser simples, tende a ser popular. Se uns o atacaram porque a inteligência não dá para mais, outros fizeram-no premeditadamente com a voracidade das hienas. Com mais um banquete de insultos, até ficarem apenas os ossos. Não se diverge, não se discute, procura-se apenas humilhar.

 

A lógica do amar-te-ei até te matar, continua viva e não augura nada de bom para o futuro do clube. A soma de desilusões vai continuar e, provavelmente, agravar-se. A incomodativa sensação de irrelevância também. E essa para mim é a que mais dói. Passamos do céu ao inferno em minutos, o que transforma a sensação em sentimento. Se não convivermos, mesmo lacrimejantes, com essa impotência e com esta maldita irrelevância, como uma família que se apoia, mas como família que se recrimina, a coisa vai ficar insustentável.

Nesta época, sob a direção de António Miguel Cardoso, as coisas, apesar das últimas derrotas, até nem têm corrido nada mal. Perdemos nos últimos tempos jogadores talentosos e/ou importantes como Edwards, Rochinha, André Almeida, Estupiñan, Sacko, Rafa Soares, que não foram substituídos por jogadores à altura. E mesmo com esses jogadores não fomos a nenhum sítio de especial. Não é expectável que agora isso aconteça, é só fazer as contas. Portanto a coisa, mais tarde ou mais cedo, vai quebrar, para além da boa vontade de dirigentes, do treinador e jogadores atuais, da sua superação ocasional. Não há classe para mais e não estou a ver, com base nas possibilidades de recrutamento, a incomodidade que os jovens devem sentir quando falham, que tão cedo este arrastar de asa se esfume. A par deste festim de sangue anunciado para breve, só falta saber quando, o presidente já veio avisar que não está aqui para se sujeitar a tudo. Está feito o aviso. Se me chateiam, chateio-me a sério, pelo menos foi isso que eu percebi. Suponho que está a batalhar, com enorme dificuldade, para pôr as contas do clube em ordem, com as principais receitas comprometidas, para vivermos de acordo com as nossas possibilidades, como se diz. E tentar viver de acordo com isso é, sobretudo, confiar na sorte e apelar a mais uns anos de eterna paciência. Os sócios escolheram de forma maioritária e legítima que o destino da SAD deve pertencer ao clube, e, como sabemos, não há ninguém que invista aqui para ser mandado sem controlar. Especialmente aqui. Daí que o barco vá abanar violentamente, mais tarde ou mais cedo.

Para mim é claro que vamos viver tempos difíceis, já hoje isso se pressente. Que os resultados desportivos, muito provavelmente, vão continuar muito aquém da nossa história, da nossa dedicação, da nossa alma. Que a irrelevância e a impotência vão corroer a nossa paixão. Podemos vociferar contra o presidente, contra o treinador, contra um ou outro jogador, mas sem qualquer esperança de vermos surgir, tão cedo, como que por milagre, uma solução. As pessoas, de boa fé, que ainda se aguentam num clima de permanente guerra civil vão acabar por desistir, e depois disso será o vazio ou o pasto para as hienas que irão tirar os últimos e parcos pedaços de carne que ainda restem agarrados aos ossos do clube e depois partirão, em manada. É aguentar ou rebentar.

 

Por mim aguento. Não estou disponível para fazer abanar o barco mais do que a maré o fará e, acho, que a maioria dos adeptos deveria fazer o mesmo. Sem dramas, atentos, interventivos, mas apoiando o Vitória de forma a salvaguardar a instituição, muito mais importante que qualquer homem ou mulher, do que qualquer circunstância, do que qualquer estado de espírito pessoal, sem histerismos e sem queimas públicas, sem divisões estúpidas, para ver se a tradição de servir o clube, seja, como já foi há muito tempo, uma honra e não uma condenação. Mas igualmente sem silêncios cobardes que nos entreguem, definitivamente, às hienas.

 

Quando se é jovem a coisa dói ainda mais. Sinto a desilusão desses jovens que acompanham o Vitória, semelhante a outras desilusões que vivi quando também o era. Saibam que eu, e muitos de nós, vitorianos, já passamos por muitas deceções e sobrevivemos e continuamos aqui. É a nossa união, a nossa resiliência, que nos distingue e nos faz mais fortes, e não a violência ou o insulto, a destruição gratuita de um património coletivo com cem anos. Aos jogadores jovens que, seguramente, leem na internet muita verborreia inútil, que são insultados quando cometem erros, que tudo fazem para que tudo saia bem e muitas vezes não sai, saibam que a maioria está do vosso lado e aprecia o vosso crescimento, e torce pelo vosso sucesso, apesar de se irritar com os erros que vocês cometem, é natural. Mas que saibam, igualmente, porque já são homens, que ganham numa semana um salário superior ao que a esmagadora maioria dos sócios do clube aufere num mês. E muitos deles, muitos dos sócios, fazem sacrifícios para o serem. Perceber essa realidade, mas sobretudo essa responsabilidade, é crescer. O fanatismo do ódio nas redes sociais não traduz, seguramente, o sentir da maioria dos vitorianos. A vida é complicada, mas nada é impossível. Quando Dani Silva, no fim do jogo em Braga, afirma “estamos arrasados”, mostra a sua desilusão e estica-a aos limites de um jovem empenhado e corajoso, quando a assume de forma tão clara e brutal. Podemos até estar arrasados, mas vamo-nos todos levantar, com a vossa dedicação e esforço, connosco na bancada, emulando a coragem do homem que figura no nosso símbolo e que, apesar de derrotas e contratempos, nunca desistiu. Arrasados hoje, mas persistentes, pois há sempre futuro se não dinamitarmos o presente. E essa é uma tarefa de todos, ou, pelo menos, da maioria dos adeptos do Vitória, da sua dedicação, da sua ímpar paixão e respeito pelo clube e pela sua história.

 

Imagem: Do filme A Paixão de Joana D’Arc. Carl Theodor Dreyer. 1928.


Crónica publicada no Desportivo de Guimarães a 24 de janeiro de 2022

Comentários

Revejo-me nas suas palavras.
Desde que o futebol deixou de ser desporto para passar a ser negócio todos os diretores passaram a ser posto em causa e as pessoas que, desinteressadamente, podiam, como antigamente, servir o Vitória não o querem fazer porque não se querem sujeitar a ser enxovalhados por qualquer "borra botas" que nada fez pelo Vitória mas que, na internet, escrevem ofensivamente, contra tudo e contra todos.
Por estas e por outras razões é que os " homens bons" de Guimarães se afastam, cada vez mais, do nosso Vitória.
Parabéns pelo seu judicioso comentário.

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