One from the heart

Não choro com facilidade, nunca chorei com facilidade. Só o cinema é capaz de me ligar o interruptor do choro. Não fora o cinema e julgar-me-ia impermeável à coisa.

Quando se é jovem (e se é homem!) chorar é uma espécie de abstração filosófica. A coisa existe, pode ser observada como um episódio do National Geographic, mas é-se incapaz de experimentar. Pelo menos eu sentia-o assim, até entrar no cinema e num filme particular que me iria arrasar a fatura da água quente interior.

Existem filmes pensados assim. É impossível resistir sem chorar à luz da conversa entre o anjo e Mr. Bailey (James Stewart) em Do céu caiu uma estrela/It’s a wonderfull life (1946) de Frank Capra, ou ao culminar dramático da amizade de Alfredo (Philippe Noiret) e Salvatore no Cinema Paraíso (1988) de Tornatore. Há realizadores que sabem tocar brilhantemente nessa nossa corda interior. Coppola não tem propriamente esse dom. Tem muitos outros.

O cinema encerra uma inexplicável magia que mexe connosco, que arranca sensações adormecidas pela rotina que fazemos dos dias. Quer a alegria, quer a tristeza, são sensações puras e o cinema é capaz de no-las devolver. Sem mais nem menos.



 

Era jovem quando vi One from the heart/Do fundo do coração (1981) de Francis Ford Coppola. O filme chegou a Portugal apenas em 1983 – sim, nesse tempo as coisas aconteciam às vezes assim – com a carga de ter sido o filme que arruinou Coppola e a sua visionária American Zoetrope. O realizador trabalharia depois vários anos para pagar as dívidas do filme. O filme custou 26 milhões de dólares, devido fundamentalmente a ser todo filmado em estúdio, com cenários maravilhosos, e não chegou a render sequer um milhão de dólares! Como hoje se percebe um pouco mais sobre défices, não é difícil imaginar o aperto do realizador. De castigo trabalhou mais de dez anos para pagar o défice que então criou com a sua incompreendida imaginação. Coitados de nós que tivemos de ver, para o ajudar, filmes como Os Marginais, Rumble Fish, ou Cotton Club.

Coppola é um génio e nessa altura era grande demais para o famigerado grande público. Hoje já não é um génio do cinema, mas provavelmente sê-lo-á na produção de vinhos na Califórnia. Tenho de os provar. One from the heart não ganhou a graça do público, não ganhou a graça da Academia, e mesmo hoje, apesar do tempo ajudar a valorizar os filmes, tem um tímido 6,5 no IMDb, isto apesar do meu fervoroso 10. 




One from the heart é provavelmente o mais glorioso fracasso cinematográfico de sempre. É um filme enorme na imagem, fruto de uma produção cinematográfica absolutamente mirabolante e de uma realização intocável. Tem uma banda sonora de sonho (Tom Waits compõe e canta com uma improvável Crystal Gayle) cuja tema principal foi nomeada para óscar (a única nomeação!) ... e perdeu. A desgraça tinha mesmo de ser total: perder para a Julie Andrews.

Este filme tem (apesar de nem darmos conta disso tal é o embasbacamento com que o vemos) uma história. Vulgar é certo: um homem e uma mulher amam-se, separam-se e reencontram-se. É basicamente isto. E eu que estava imerso, por essa altura, nos grandes realizadores europeus que então começava a conhecer e a amar e vejo-me a chorar como uma criança na cena da manga do avião, que provavelmente o Coppola não imaginou que alguém chorasse. Já antes da cena a garganta se me apertara, mas a voz desafinada e arrastada de Hank (Frederic Forrest) a competir com o inalcançável Raul Julia fez o resto. E quando a luz apareceu eu estava arrasado e nem sequer o escondi. Estava miseravelmente deslumbrado com o filme. 




Na altura deslumbrava-me igualmente com algumas mulheres, estava na universidade (fundamentalmente) para isso. Houve uma, no entanto, que a um determinado ponto da minha vida mexeu mais comigo do que era habitual. Seria grave? Comentei na altura com uma querida amiga minha que ia levar essa rapariga - por quem me havia recentemente deslumbrado - ao cinema ver o One from the heart. Queria ver a reação dela. Seria uma espécie de teste ao meu deslumbramento por ela, ao eventual merecimento dessa minha decomposição interior. Não aceitaria dela qualquer comentário gratuito, qualquer insensibilidade como a ausência de choro (pelo menos na cena final). O cinema é uma coisa séria e a opinião das pessoas sobre um determinado filme define-as. O amor também o é, por isso juntei os dois. Eu, fraco como sou, esqueci-me do teste a que a sujeitava e desatei novamente a chorar, na segunda vez que vi o filme (agora com ela), esquecendo-me do meu papel de examinador. Por pouco não reparava que ela também chorava. Era ela. E foi.



Texto adaptado de uma crónica para o boletim do Cineclube de Guimarães, quando o Cineclube me convidou a apresentar um filme (março de 2016)


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