ABSOLUTO E RELATIVO

 


A nossa vida é, quase sempre, uma luta mental entre aquilo que consideramos absoluto e aquilo que consideramos relativo, e o peso que cada uma dessas inconciliáveis dimensões tem naquilo que somos, ou mostramos ser. Se nos deixamos dominar pelo absoluto somos uns chatos, sempre cheios de convicções inabaláveis, podendo mesmo chegar ao insuportável snobismo da certeza: é assim porque é assim. Se, por outro lado, tudo para nós é relativo, tornamo-nos igualmente chatos pela incapacidade de concordar ou discordar de alguém, pela incapacidade de ter uma convicção que seja.

 

O segredo deste difícil equilíbrio residirá, penso eu, em aplicar o absoluto e o relativo em áreas e em doses apropriadas. E saber que essas áreas não se cruzam, nem se devem cruzar.

O absoluto deve ficar guardado para quem se ama, pois só se pode amar absolutamente. No absoluto cabe também a liberdade, talvez o país, a dose certa de vinagre no arroz de cabidela, o clube, o gosto por uma música particular que não tem de ser absoluta para os outros, só para nós. Mas não se deve abusar do absoluto, não. Apenas aquilo de que temos certezas fundas e inabaláveis, pois o absoluto pesa e destrói mais do que o relativo.

O relativo por ser mais leve, deve ser distribuído sem parcimónia. Fica bem não ter certezas sobre uma guerra, sobre a combinação exata de umas calças com uns sapatos, sobre a vida eterna, sobre uma manobra de trânsito, sobre uma ideia política. O não ter, por vezes, certezas, é estimulante.

O absoluto deve ser a bagagem de mão que levamos para o avião, apesar de sólida, deve ser contida, confortável, manejável e estar sempre por perto. O relativo deve ser o malão imenso que vai para o porão, com roupa a mais para o caso de no verão, afinal, nevar. O relativo é, contudo, útil e pode estar um pouco mais longe, mas sabemos onde ele está.



 

Nos dias que correm há uma tendência suicida pelo absoluto. Pelo nós contra eles. Pela nossa inabalável razão, contra os malandros que não a têm.

Há quem só consiga viver no absoluto. Por estes dias tristes, com a mediática morte de Odair, o reino do absoluto voltou. Depois do enorme trabalho que o primeiro-ministro teve em colocar, durante estes últimos meses, o senhor Ventura a debater-se com as suas próprias incongruências nas águas relativas da política real, da política concreta dos projetos e das ideias, lá vem mais uma vez um conjunto de (bem-intencionados?) cidadãos dar-lhe o palco absoluto que ele não tem tido. E querem, absolutamente, que a sua proverbial mesquinhez seja criminalizada. Que absoluta estupidez! E é ver, claro, a criatura toda contente, revigorada como um Lázaro que alardeia o seu ressuscitar, como um moribundo a quem se dá uma injeção de adrenalina. Ainda não perceberam que é precisamente isso que ele quer? Parece que não.

A política americana também ela, infelizmente, é dominada por ideias absolutas. O que se diz, como se diz, por mais absurdo que seja é absoluto e divisório. E é isso que, hoje, parece interessar. Algo que há duas décadas atrás pareceria próprio de um líder louco e totalitário de um país do terceiro-mundo, está semeado sem vergonha numa das mais importantes democracias do mundo, com a ajuda das sinistras personagens que dominam o tecnonegócio. Não interessa o que se diz, o que interessa é dizer ... e quanto mais absurdo for, melhor, pois é mais divisório e absoluto. É mais moderno, é mais “viralizável”.




Adoro aquilo que em mim é absoluto, mas procuro que isso não cresça em demasia e me domine. 

Quando nos tornamos mais velhos há uma tendência para o absoluto, para acharmos que a idade nos deu certezas, para sermos incrivelmente irritantes no seu uso e fustigarmos os outros com elas. Eu estou, por estes dias, mais humilde do que o sábio filósofo grego que só sabia que nada sabia. 

Envelhecer e optar pela aparente dificuldade do relativo é, creio, recuperar alguma juventude. Aquela incerteza que nos consome, mas nos faz andar em frente. Como a incerteza de um beijo que pode ou não acontecer, mas cuja probabilidade nos move sempre em direção ao tudo, ou ao nada. Mas move.


“(...)Eu possa me dizer do amor (que tive):/ Que não seja imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure.”

Vinicius de Moraes. Soneto de Fidelidade.1939.


Publicado in O Comércio de Guimaraes, a 30 de novembro de 2024


Imagens do site Vinicius, em viniciusdemoraes.com.br

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