I fanfaroni
Sempre gostei do cinema italiano do pós-guerra e tive a sorte de ver em
sala de cinema muitos desses grandes filmes do Rosselini, do Vittorio De Sica,
do Visconti, a que se designou por neorrealismo italiano. Atualmente é
praticamente impossível vê-los nesse enquadramento. E o dvd e a televisão
plastificam o cinema, roubando-lhe a sua dimensão cénica e emotiva.
Noutra linha paralela surge
o cinema do grande Fellini, com títulos que me ficaram na cabeça pela sua
sonoridade como I vitelloni (1953) ou I clowns (1971). Para os italianos a
letra “i” tem a força de um plural, aprendi-o nas aulas de italiano que frequentei
na Faculdade de Letras de Coimbra, roubando tempo à minha química inorgânica ou
ao meu eletromagnetismo, bem menos excitantes e renascentistas. I vitelloni
(traduzido para português como Os inúteis, como o poderia ter sido para Os
malandros) é um desses filmes arrebatadores que retrata e troça de forma
apiedada de um grupo de jovens cuja alma não cabe na terra que os viu nascer.
Assim aconteceu com Felinni relativamente a Rimini. No entanto esses malandros
são boa gente, são fanfarrões simpáticos bem longe dos fanfarrões que hoje nos
entram pelos olhos dentro dia após dia e sobre os quais Felinni teria também
hoje, na sua querida Itália, barro suficiente para novas comédias sob o cinismo
cortante da sua arte.
Na televisão ou nos jornais portugueses deixou-se há muito tempo de se
fazer jornalismo de investigação. Seja pela justiça inoperante ou pela força do
poder instalado, foram caindo, um a um, os jornalistas que com coragem
costumavam denunciar os atropelos. Hoje quando sabemos pormenores escabrosos sobre
algo ou sobre alguém é porque a situação se revelou tão podre que foi já
impossível disfarçar o cheiro.
Para substituir o vazio
assim criado contratam-se hoje, até à náusea, os comentadores, os politólogos,
os especialistas – sem esquecer os indispensáveis populares para condimentar a
insípida sopa informativa – que, regra geral, são encartados fanfarrões. Estes
fanfarrões modernos, de impecável retórica e moralidade rasteira, nada se
assemelham aos inócuos fanfarrões do Felinni. Infelizmente.
Perdemos há pouco o Relvas que demorou mais a sair que um grosso pingo
de gordura na roupa clara. Fanfarrão impecável saiu, não de mansinho como
recomendaria o bom senso ou a vergonha, mas com o estrondo de quem se julga
imprescindível. Disse-nos que a história o julgará, como se daqui a uns anos a
história ficasse reduzida à irrelevância. Esperemos que não.
No entanto deixou-nos algo
para nos divertirmos: o Miguel Gonçalves e, em mais uma brilhante jogada
política que só a tal história julgará, um outro fanfarrão, o inefável
Sócrates. Chegou-nos limpinho e aprumado criticando a austeridade que ele mesmo
cavou e assinou, como um turista que desdenha a vida e os modos dos autóctones
que visita. Teve o condão de acordar os acólitos, encartados fanfarrões, que juram
que o nosso profundo estado de necessidade é afinal um engano e que podemos,
sem qualquer espécie de constrangimento não pagar a quem devemos, não cumprir o
que nos obrigamos a cumprir, e retomar sem demora os comportamentos que nos
conduziram à situação desesperada a que chegamos.
Valha-nos pelo menos o
divertimento de o ouvir dizer que se sentia ofendido quando comparavam a sua
licenciatura à de Relvas. José Diogo Quintela resumiu muito bem essa profunda
divergência filosófica entre fanfarrões: “todas as licenciaturas legítimas se
parecem umas com as outras; cada licenciatura manhosa é manhosa à sua
maneira”.
No futebol a fanfarronice não é defeito mas feitio. Tanto que por cá a
venda de jogadores vitorianos acicatou a fanfarronice indígena. Preço de saldo
disseram. Apesar da prazenteira época da nossa equipa os problemas de tesouraria
continuam reais dada a miserável situação herdada. Fazem-se então orelhas de
mouco e louvam-se os atletas e treinadores profissionais que, malgrado assédios
e tentações, honram a história do clube e a paixão dos seus adeptos,
permanecendo fiéis e compreensivos ao titânico e extraordinário esforço dos
dirigentes que mantêm o clube vivo e ativo, com futuro.
O problema dos fanfarrões não está apenas na ingénua e ignorante
credulidade de quem os segue mas, sobretudo, na ausência de escrúpulos sobre a
qual constroem a sua interior e manhosa inculpabilidade.
Fotos do filme I vitelloni
Crónica publicada in O Comércio de Guimarães / Guimarães Digital
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