A vida sem direção assistida



“… os pobres sonham em ter o suficiente para comer e ficar parecidos com os ricos. E os ricos o que é que sonham? Como perder peso e ficar parecidos com os pobres”
Aravinda Adiga. O tigre branco. 2008.

O meu carro brindou-me, a passada semana, com um problema que me deixou apeado nas situações mais inoportunas. O terror dos carros modernos são os problemas elétricos. E lá vão eles obedientes e silenciosos ao rastreio por computador. Se o computador acusa a maleita é tudo rápido e eficiente, se assim não acontece é ver os mecânicos impotentes tentando adivinhar o que se passa para além da informação digital debitada na célula central. Olhando absortos para os componentes do veículo como olhariam para a carcaça de um ser alienígena que caísse, surpreendente, do céu.
Já não existem mecânicos como dantes. Já não existem homens pintados a negro pela viscosidade dos óleos e fluidos dos carros, com panos imundos pendendo dos macacões igualmente sujos como a pele. Esse quadro é de um tempo que se foi. O raciocínio apurado dos mecânicos, os seus sentidos alerta para detetar um ruído ou uma faísca despropositada, deixaram de fazer sentido pois tudo hoje no mundo da mecânica é asséptico e depende de ligações estudadas entre os componentes do carro e um computador que diz, quando diz, o que está a funcionar mal. A avaria não se deteta pelos sentidos, nem se adivinha, imprime-se em papel.

Voltei por necessidade a um carro com “ar” (poético propósito este!). E “puxei o ar” ao carro, arrancando-o à imobilidade e ele roncou de prazer e encheu de gasolina os meus pulmões. Voltei a rodar o volante com muita força como se conduzisse um barco, ou pelo menos a ideia que eu faço do que seja operar o leme de um barco. Nos carros antigos por mais pequenos que sejam, e este era-o, tudo é duro, másculo, vibrante, muito mais próximo da condução de um animal, ou pelo menos da ideia que eu faço do que será conduzir um animal. A marcha no carro que usei para substituir o meu é mais lenta e nervosa e as curvas “desfazem-se” mesmo, tal a força utilizada para as “fazer”. O paralelo comunicou-me diretamente com os ossos e a condução passou a ser um exercício físico, musculado e ostensivo como se operasse uma pandeireta gigante, ou pelo menos a ideia que eu faço do que será tirar som de uma pandeireta gigantesca.




Quando o meu carro regressou, envergonhado e cabisbaixo, de mais uma operação electrónica eu já não o sabia conduzir tão bem. Pareceu-me estranho e desajustado, grande e tão leve que dei por mim a exagerar nas curvas, tentava “desfazê-las” quando a direção assistida, agora de volta, apenas queria que eu as contornasse, suavemente. Havia-me habituado, afinal, e mais decisivamente do que eu pensara, ao desconforto.

Perdemos, por vezes, na vida a direção assistida. Por mais sólido que nos pareça o carro em que caminhamos pelo tempo adentro há sempre qualquer coisa, inesperada, à nossa espera. Não devemos, nunca, viver no terror do inesperado, mas deveremos, humildes, viver na incerteza do possível. É mais cómodo e avisado.





Ao que parece o meu carro não sofria afinal de nenhuma impossibilidade electrónica profunda. Oxalá tudo se tenha resumido, como me disseram, a um fio mal conetado com o motor de arranque. Uma avaria simples, prosaica e entendível, até por mim, mas que escapou impune ao software da viatura. Quando o carro, ou a vida, pára ao peso de um fio lasso tudo é, confortavelmente, mais simples e entendível. É só ligar.


Imagens_Ladrões de bicicletas___Vittorio De Sica_1948



Publicado in Comércio de Guimarães. 30.10.13.

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