O dia de anos
“(…) Ele
deixará a tabuleta e eu deixarei os versos/ A certa altura morrerá a tabuleta
também, e os versos também/ Depois a certa altura morrerá a rua onde esteve a
tabuleta,/ E a língua em que foram escritos os versos./ Morrerá depois o planeta
girante em que tudo isto se deu. (…) ”
Álvaro de Campos. Tabacaria. 1928.
Escrevo este artigo no meu dia de anos. Na quinta-feira que precedeu a
publicação desta crónica. E sinto-me ligeiramente confortado por, no dia de
anos, ter tempo e disposição para falar do meu dia de anos.
Sinto, talvez desde que completei 30 anos, uma certa surpresa pela
quantidade de anos que cada meu aniversário traz. Trinta e quatro, meu deus,
trinta e nove, já (?), quarenta e três, não é possível, e por aí adiante até
aos quarenta e nove. E recordo hoje com saudade a surpresa numérica dos
aniversários anteriores, desejo-a de forma tonta e irresponsável. A angústia do
tempo dá à barriga um friozinho de aflição. Molda-a ao susto na cadência dos
aniversários. No entanto isso é bom: significa que podemos sentir. Haverá um
dia em que isso não acontecerá e isso é que será realmente mau. Apesar de “em
outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente/ Continuará
fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas (...)”.
Mas não serei eu e isso é o bastante para ser, no mínimo, inoportuno.
Apesar de tudo o que possa incomodar na passagem dos anos continuo com o
desejo infantil de os comemorar. Através de uma histriónica festa, de um jantar mais íntimo, de uma conversa
mais alargada, tudo deverá ser uma bom meio de enformar o pretexto que os
aniversários nos oferecem. Agora que os aprendizes de Lutero que nos governam
já arrumaram com uma data de feriados que comemoravam datas importantes como a
implantação da República e a restauração da nossa independência, é bom termos
um feriado só para nós. Mesmo trabalhando nesse dia podemos cortar a fita do
monumento que de nós fizemos e pôr a nossa banda musical interior a tocar a
nossa marcha, sincopada e ordenadamente. Merecemos um feriado pessoal por ano.
É uma boa cadência. Desde que nasci a Terra deu já 49 voltas ao Sol. Nada mau.
Se vivesse em Júpiter ter-me-ia comemorado apenas 4 vezes, em Saturno estaria
apenas a caminho do segundo aniversário o que seria, notoriamente, um tremendo
aborrecimento.
A expressão “fazer anos” é deliciosa. Dá-nos o controlo absurdo do
tempo. “Fazer” como se o fizéssemos, como se trabalhássemos a idade que temos,
como se a construíssemos. A ilusão de “fazer” é por isso boa e o melhor é
persistir nesse erro. “Fazer anos” como se faz um filho, ou um cabrito assado,
ou uma crónica, é suficientemente reconfortante para não deixar de se fazer.
Daí que a opressão numérica da idade, as falhas visíveis que o tempo cava no
corpo, o facto de nos lembrarmos de coisas que outros já sabem apenas através
dos livros de História, não é algo que nos deva preocupar pois ainda nos
estamos a “fazer” e esse é um trabalho que não pode ficar incompleto e que
exige a nossa mais absoluta dedicação, sem angústias. A ilusão de nós fazermos
o tempo e não deste nos fazer a nós é algo que não podemos desperdiçar, já que
tudo é relativo. Até o tempo o é.
Espero vir a ter saudades de quando fiz quarenta e nove anos e pensar,
como um fraco, de como era feliz então.
No dia de hoje, que não é
efetivamente o hoje de quem me lê, antecipo apenas em alguns anos essa ideia de
felicidade. Transporto-a para hoje, recusando-me a espartilhá-la em duodécimos
de felicidade futura.
Parabéns para quem hoje faz
anos. Seja qual for o hoje.
Publicado in Comércio de Guimarães
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