Remédios & Culpa
"(...) Canto, e canto o presente, e
também o passado e o futuro,/ Porque o presente é todo o passado e todo o
futuro (...)".
Álvaro
de Campos. Ode Triunfal. 1914 (há 100
anos!).
Algumas pessoas que eu conheço têm por hábito
desejarem ter pertencido a outra época. Muitas delas suspiram por outros tempos
que conhecem dos livros, dos filmes. Sentem saudades da placidez imaginada de
um séc. XIX, pela igualmente imaginada calma e lentidão desses tempos, se bem
que na perspetiva de uma classe dominante, mesmo que para olhar os rios e as
pedras e a paisagem ... mas de uma mais confortável perspectiva, suponho. Eu
não. Sinto-me confortável na época que me calhou viver, o que será para mim, no
mínimo, tranquilizante.
Tranquiliza-me o excesso de informação e rapidez tecnológica que envolve este tempo.
Não certamente da mesma forma que os rios e as pedras e a paisagem possam
tranquilizar, não. Mas na verdade sinto um certo poder anestesiante na
velocidade, na necessidade quase esquizofrénica da adaptação. Se isso resulta
de uma virtude do tempo ou de um vício do tempo, isso não consigo eu perceber.
Mas não importa. Aceito-o com um certo prazer.
Contemplo assim o tempo que vai abrindo sucessivas
portas que permitem ir percebendo como chegámos até aqui. Contemplo as imagens
e o sons digitalizados que, como livros, abrem caminhos e resgatam memórias de
coisas que não vivemos. Dou vivas aos motores, à radiação que nos cerca e que
tem o segredo da nossa existência, ao eletrão que existe nas pedras e nos rios e
no ecrã do meu computador que regista, impecável, uma tradução aproximada dos
meus pensamentos. Dou vivas ainda à variedade e acutilância dos medicamentos.
Admito que o último período do parágrafo anterior me
tenha colocado, mesmo que erradamente, na classe dos hipocondríacos. Não o sou.
Pode-se admirar o efeito terapêutico dos medicamentos, pode apreciar-se a
variedade de soluções químicas que os tão mal-amados laboratórios farmacêuticos
diligentemente produzem, sem ter a mania das doenças. Aliás os bons
“apreciadores” de medicamentos usam-nos, não abusam deles. Tal como o vinho que
pode ser um prazer ou, se abusado, uma prisão.
Folgo não correr o risco de morrer hoje de uma infeção
ou de outra maleita que há bem pouco era uma condenação. Folgo igualmente por
todas as horas que diligentes farmacêuticos devotaram a perceber qual o
elemento químico cuja deficiência nos põe irritados, ou tristes, ou quebrados. E
não me choca perceber que a nossa espiritualidade depende, fundamentalmente, do
corpo que a suporta.
Folgo de forma regular pela existência do aspegic,
pela sua eficácia no desentupimento da minha cabeça através da ação miraculosa
do acetilsalicilato de lisina. Gosto dos xaropes para a tosse, desde miúdo, e
das pastilhas contra a gripe. Gosto do milagre acelerado da penicilina e do
simpático gurosan para reparação de danos. Gosto, ocasionalmente, do cloridrato
de propranolol e de complementos de magnésio dos quais perdi o nome. Gosto
desta diversidade e, sobretudo, da possibilidade de.
Infelizmente não há medicamentos para a culpa, e
sobretudo para a culpa que não deveríamos ter e no-la venderam com particular
habilidade. Não estou a falar da culpa pesada e verdadeira, mas da culpa
distribuída de forma abusivamente democrática. Não falo da culpa que prescreve
alarvemente nos tribunais, nem da culpa dos enormes rombos financeiros
conhecidos, nem da culpa daqueles que nos dão semanalmente, através da
televisão, receitas para a crise que eles próprios cavaram, não. Não falo dessa
culpa real, mensurável, palpável. Estou a falar da culpa que carregamos hoje
enquanto povo. A culpa de sermos ocasionalmente felizes, a culpa de sair do
trabalho a horas e não depois do horário estabelecido, a pesada culpa de termos
vivido acima das possibilidades e termos, provavelmente, exagerado no queijo ou
no fiambre, a culpa por este maravilhoso sol que agora volta qual filho pródigo.
Sim, essa terrível culpa de sermos portugueses.
Mas talvez tudo isto não passe afinal de um
desequilíbrio – esperemos que ocasional - dos meus eletrólitos no organismo.
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