Anos de casado
"Naquela
tarde quebrada/contra o meu ouvido atento/eu soube que a missão das folhas/é
definir o vento.”
Ruy Belo. Aquele Grande Rio Eufrates . 1961.
A expressão “fazer anos de casado” é, julgo, muito mais comum na
linguagem corrente do que “aniversário de casamento”. Penso que isso fará algum
sentido. Fazer anos de casado tem uma sonoridade bastante mais guerreira do que
o frugal e festivo aniversário de casamento.
Durante muito tempo
desdenhei dessa mesma sonoridade. Parecia-me então que os casais a entendiam
mais como uma prova de resistência do que, pensava, uma prova de amor. Fazia-me
lembrar mais uma condecoração do tempo do que a volatilidade inquantificável de
uma paixão. Fazia, já não é (para mim que fiz há pouco 21) assim agora.
Durante a primeira década e meia de casado raramente me lembrei da data.
Felizmente a minha mulher também se esqueceu algumas vezes. Não fosse o dia de aniversário
da Inês (filha de amigos nossos) e a data passaria, muitas vezes, sem
particular lembrança. Quando porém isso não acontecia e era eu o inevitável
esquecido lá tinha então, pobre espécime masculino, que gramar com a
superioridade moral das mulheres para datas. Suponho ser no hemisfério cerebral
das datas que nós, homens, guardamos as fundamentais memórias dos jogos de
futebol ou o nome das bandas inglesas e as letras das músicas dos Talking Heads, daí que com o passar dos
anos, como nos computadores velhos, temos que jogar fora as coisas menos
importantes como datas de casamento ou aniversários, de que as mulheres sempre
nos lembram de uma forma cortante e cínica.
No entanto agora lembro-me
sempre. Não porque à socapa, como tantas vezes aconteceu, a vá ler, como numa
cábula, no interior da aliança, não. O que acontece é que percebo – ao fim de
tanto tempo – o que é “fazer anos de casado”. Sinto finalmente a leveza do seu
peso cronológico e lembro-me agora do dia em que faço anos de casado. Não que
faça qualquer coisa de especial – este ano juntamos uma aula de ginástica, um
filme (o surpreendente Capital Humano) e um menu Big Mac a meias – mas porque a
data existe e se repete como uma estrela. Ali, a cada ano, naquele quadrante do
céu noturno e naquela posição temporal.
Fazer anos de casado pede a força de um verbo forte: fazer. Fazer com o
mesmo desvelo com que se faz um texto ou uma sardinhada, mas durante muito mais
tempo e, certamente, com uma exigência e uma delicadeza diferentes. Uma
sardinhada é uma circunstância, um texto provavelmente um pouco mais que isso,
é mais motivacional do que circunstancial, os anos de casado podem ser a soma
de tudo isso, de sardinhadas e de textos com uns milhões de outras parcelas igualmente
somadas na aritmética dos anos e talvez, no fundo, a mais perfeita prova
científica da inoxidabilidade do amor.
O tempo dá-nos (maldoso) uma cara que nos surpreende cada vez que nos
barbeamos com mais calma, mas dá-nos igualmente as certezas que nos angustiavam
na altura em que estas não existiam. Do tempo em que as certezas eram simples e
sofridas abstrações.
Amar é afinal tudo. Com
casamento ou sem ele. Cada minuto em que se ama é um minuto em que somos
obrigados a sair fora de nós mesmos, são as merecidas férias do nosso
individualismo acessório. Amar é o Santo Graal na mesinha de cabeceira, o tão
procurado, e afinal tão claro, sentido da vida. Amar é suspender o tempo e
deixá-lo julgar que se soma.
FOTOS: Alexandre Coelho Lima IMAGENS: One from the heart. Francis Ford Coppola. 1982.
Publicado in O Comércio de Guimarães. 09.07.14.
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