Dores de parto
Está a ser absolutamente
inacreditável, para mim, assistir ao que se escreve e diz sobre a detenção de
José Sócrates. Não é propriamente o vendaval mediático da “Operação Marquês”
que me incomoda, mas a poeira que ele, com o seu movimento, faz levantar.
Eu sei que – devo ser
sincero – me impressiona até à perplexidade a devoção religiosa que tanta gente
tem a Sócrates. Eu estou precisamente do outro lado: sou um feroz agnóstico que
sempre o considerou um trapaceiro perigoso, uma espécie de prestidigitador
retórico que esconde, invariavelmente, a verdade.
Estivemos na mão dele
durante alguns anos com resultados catastróficos para o país, que só o mais
fundamentalistas dos devotos não conseguirá ver. A sua vida política foi cheia
de casos que os seus fiéis rapidamente transformaram na liturgia da perseguição
e numa espécie de dogma intocável que atesta a sua (ineludível) santidade. Não
conheci, desde o 25 de abril, nenhum político com tanto desprezo pela liberdade
como Sócrates. O modelo venezuelano ter-lhe-ia servido na perfeição, sem ter de
prestar contas à justiça, à comunicação social, ao povo que existe além dos seus
devotos. Mesmo assim, em democracia, não se coibiu de usar as suas armas para
condicionar quem se lhe opunha; e algumas delas continuam, no poder económico,
político ou de estado, prontas a ser novamente usadas. Penso que, também por
isso, o juiz achou por bem ser a prisão domiciliária a forma que lhe
dificultaria mais a tarefa de urdir novamente uma das suas teias.
Apesar do odioso da forma
como fomos humilhados começamos a cumprir as obrigações a que (voluntariamente)
nos comprometemos, mesmo assim com um indesejável rol de erros, omissões e
insensibilidade. A justiça não parece temerosa em enfrentar um
conjunto de pessoas com um poder imenso na nossa sociedade portuguesa, sempre
habituada a estar de chapéu na mão, incapaz de falar verdade, e tem entrado
decidida naquilo que parece podre na política e no sector financeiro.
Começaremos, finalmente, a parecermo-nos como um país do primeiro mundo? Até
fico arrepiado ao pensar que assim possa ser. Que não aconteça aquilo que os vários
diálogos dos Maias entre o Carlos e o Ega retratam – e que João Botelho tão bem
traduziu recentemente para cinema – em que se desanca no país para logo, na
primeira oportunidade, se ceder aos caprichos da mediocridade.
Eu sei que teria sido do
primeiro mundo deixar o caso andar sem ter necessidade de escrever nada, como
agora o fiz. Mas que diabo, são (ainda) fraquezas do segundo mundo.
Foto:JN
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