A migração das palavras
“Se não há homens insubstituíveis, há palavras que são insubstituíveis.
Elas, de resto, não exprimem nunca o conflito, mas o seu fantasma; e o fantasma
de uma realidade está subordinado à escolha estrita das palavras.”
Agustina Bessa Luís. Dicionário imperfeito. 2008.
Já deverão com certeza ter
notado a minha preocupação em escrever segunda as normas do novo acordo
ortográfico. Se eu fosse um cronista de renome pediria até - em rodapé - a
indicação Rui Vítor escreve de acordo com
a nova ortografia. E porquê? Por snobismo contra os snobes,
fundamentalmente.
O que me deixa realmente
preocupado não são as regras e mudanças, mas as palavras em si. Sobretudo as
que desaparecem da linguagem comum no emagrecimento lexical da nossa língua, que
vai, por estes dias, desperdiçando e esquecendo os seus termos mais ou menos
coloridos.
Tenho saudades do estrugido e
do burnir, tão típicos da nossa zona. O estrugido tem a sonoridade do azeite
quente enquanto o refogado é demasiado macio para a vibração culinária. O
burnir, ou brunir, tinha um asseio diferente do passar a ferro, era engomar com
desvelo. É capaz de ter desaparecido pois já ninguém sabe burnir como burnia.
Não se encontram na rua hoje
mulheres desesperadas gritando “gandulo!” a um rapazote mais atrevido ou ao
moço mais desbocado. Podia, porventura, ir-se um bocadinho mais além e
chamar-lhe mesmo estupor, não era preciso dizer-se um palavrão para insultar. Até
o insulto precisa de fugir ao facilitismo vulgar do palavrão. Há palavras para tudo.
Relembro assim o Sr. Monteiro, dono de uma mercearia – outra palavra em desuso,
engolida pelos mercados super e depois hiper –, no início da rua D. João, que
uma vez gritou “o estupor do rapaz caiu-me ao lago”. Era eu e mereci o desabafo
pela trabalheira que, incauto, lhe dei.
A bucha desapareceu e a
merenda vai também a caminho, substituída pelo anglicista lanche. Mantém-se
(ainda) o kispo que adotou desde os anos setenta o “k” muito antes do novo
acordo ortográfico. A minha geração, que inicialmente os usou, preservou a
marca e deu-lhe a consistência de uma palavra que ainda hoje as novas gerações
usam para designar os blusões de penas. Era quentinho e impermeável e assentava
sempre em fortes, apesar de primitivos, reclames televisivos. Reclame foi outra
palavra que voou e nunca mais voltou, ficando a palavra anúncio, grave como uma
pomba gorda que não migra mais de trinta metros entre a torre de S.Pedro e o
transeunte que de forma irresponsável a alimenta no Toural.
Apesar do galicismo adoro a
palavra chofer. Tem um tom distinto, não carregando o desconforto proletário da
palavra motorista. Sr. chofer por favor meta o pé no acelerador dizia-se ao condutor
da camioneta no passeio escolar, longe do politicamente correto das normas
securitárias. O chofer da furgoneta também ganhava uma pintinha de sangue azul
no seu desalinho, até chegarmos ao topo da classe: o chofer de praça. Se hoje se
cultiva alguma má vontade relativamente aos taxistas, o mesmo não se poderia ter
para com um linguisticamente aprumado chofer de praça ... no Toural das pombas
cada vez mais ociosas, onde já não circula o malotinha vendendo cautelas. Os
malotas desapareceram, não sei se por força dos corcundas ou do sistema
nacional de saúde, e a cautela (o vigésimo de um bilhete de lotaria) também, e
com ela a poesia que a matemática fração nunca terá. Comprava-se uma cautela pela
cautela de não desbaratar o dinheiro num bilhete inteiro. Faz-me falta o
deferente vossemecê da minha avó por contraponto à boçalidade do você. Faz-me
falta o escangalhado, a serigaita, o lingrinhas, a chanca, os auscultadores e o
biscoito. Não me fazem assim tanta falta as ceroulas – sempre fui quente – nem
as remelas, nem a trepa.
E se as palavras migraram e
se cansaram de voltar à boca das pessoas, outras aves lexicais apareceram sem
particular proveito para a língua. Não me socorrendo da vulgaridade efémera das
palavras do ano, não posso deixar de mostrar o meu desagrado pelo visualizar
que vai engolindo o verbo ver, pelo realizar em vez do perceber, e sobretudo
por essa pomba sebosa e cobarde que é a palavra inverdade.
E para aqueles que não
concordarem com esta minha ornitologia das palavras poderei sempre dizer-lhes,
de ombros tensos e sobrolho franzido: ora essa?
Cartazes do filme Os Pássaros. Hitchcock.1963.
Artigo publicado in O Comércio de Guimarães (01.04.15)
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